sábado, 4 de junho de 2016



04 de junho de 2016 | N° 18547 
DAVID COIMBRA

Ser Elena ou ser o gato

Eu poderia ser Elena Ferrante. Mas infelizmente não sou. Talvez você seja.

Qualquer um pode ser Elena Ferrante. Ou talvez não.

Porque Elena Ferrante necessariamente há de ter nascido na Itália, com boa chance de sua região situar-se pouco acima do peito do pé da Velha Bota, que é onde fica Nápoles, a provável cidade de Elena Ferrante.

Quer dizer: cerca de 60 milhões de seres humanos podem ser Elena Ferrante. É muita gente. Quem me apresentou Elena Ferrante foi meu fornecedor. Fornecedor de livros, bem entendido.

É o Guilherme, da Beco dos Livros, aí de Porto Alegre. Ele tremulou um exemplar na minha frente e anunciou: – É muito bom!

Aquela exclamação que espetou depois do bom me fez comprar o romance, e não me arrependi.

O título é meio prosaico, A amiga genial, mas a história é contada por quem sabe contar uma história. A autora (ou autor) consegue construir um clima de tensão que faz você avançar páginas adentro quase que sem parar para tomar um gole daquele tinto da Califórnia que adormece na mesinha ao lado.

Falo “autora ou autor” porque ninguém sabe quem ele (ou ela) realmente é. Elena Ferrante, que assina o livro, é pseudônimo. Ela (ou ele) só dá entrevistas por e-mail, por intermediação da editora.

Um mistério. Escrever sob outro nome é uma tentação, porque você fica livre da sua própria personalidade. Não é preciso ser coerente com seu passado ou suas opiniões nem dar explicação. O autor não existe, o que existe é a história.

Eu mesmo escrevo sob pseudônimo, sabia? Um dia você descobrirá aquele outro que sou eu.

O escritor que mais usou outras personalidades para se expressar foi Fernando Pessoa. São famosos os seus chamados “heterônimos”. Ele teve vários, mas três se consagraram: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Fernando Pessoa fez um poema sobre o tema (rimou, dá soneto):

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

Fernando Pessoa era um cara esquisito. Viveu uma vida solitária e morreu sem se expressar na língua que o consagrou, o português, e sim em inglês. Sua última frase foi enigmática:

“I know not what tomorrow will bring”.

Eu não sei o que o amanhã trará.

O amanhã trouxe imortalidade a seu nome e aos seus heterônimos. Fernando Pessoa, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos vivem.

Bastante freudiano, isso de escrever debaixo de outra personalidade. O próprio Freud foi freudiano, neste sentido. Freud escreveu um pequeno livro sobre a estátua de Moisés, de Michelângelo, e não o assinou. Só depois de algum tempo é que anunciou:

“Agora estou pronto para assumir o meu Moisés”.

Por que seria? Só Freud explicaria.

Eu, se pudesse ser outra pessoa, não seria outra pessoa. Seria um gato vadio, desses que andam pelo teto do Mercado Público de Porto Alegre. O gato é o ápice da evolução. Nós, seres humanos, precisamos das outras pessoas para viver e sobreviver. O gato, não. O gato, como dizia Neruda, anda sozinho e sabe o que quer. Neste poema, Ode ao gato, o poeta o define assim:

Oh, fera independente da casa, arrogante vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico e alheio, profundíssimo gato,

polícia secreta dos quartos, insígnia de um desaparecido veludo...

Alguém quererá ser algo, além disso?

Sim, eu seria um gato. Não um gato de madame, não um gato castrado, não um gato de sofá. Um gato vagabundo, noctívago, suavemente perigoso e violentamente livre, como só um gato pode ser. Como nenhum homem é.

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