quinta-feira, 23 de junho de 2016


22 de junho de 2016 | N° 18562 
DAVID COIMBRA

O verso do voto


A grande qualidade de Alceu Collares é que ele não se leva a sério. Não estou dizendo que ele não é um homem sério no sentido de integridade e tal. Estou dizendo que ele tem senso de humor e inteligência em quantidades suficientes para rir de si mesmo.

Eis um predicado que vem escasseando assombrosamente a cada dia, neste país tropical.

Collares é metido a fazer versos. Quando candidato a vereador em Bagé, elegeu-se com um slogan criado por ele próprio, do qual se orgulha muito até hoje. É o seguinte:

“Ô, meu, Ô, meu, Vota no Alceu”. Segundo ele, foi a força desta poesia, de resto bastante concreta, que lhe valeu a primeira eleição.

Nas entrevistas, Collares repete sempre outro poema de sua lavra, em que ele fala com o eleitor, recomendando com ênfase dramática: “O voto é tua única arma! Põe o teu voto na mão! O voto é tua única arma! Põe o teu voto na mão!” Eis. 

Nós brasileiros acreditamos nisso, que o voto é nossa única arma. Tamanha crença no voto vem da falta de. O Brasil experimentou duas longas ditaduras e outros bafejos autoritários. O voto foi tirado do brasileiro. Terrível violência. Donde, o brasileiro passou a acreditar que, tendo de novo o voto, seus problemas estariam resolvidos.

Assim foi com a escravidão do homem negro. Como faltava a liberdade ao homem negro, parecia que só o que lhe faltava era a liberdade. Lincoln, o libertador dos escravos nos Estados Unidos, dizia que os negros tinham de ser livres como os brancos, mas que não eram iguais aos brancos. Foram necessários mais cem anos para os negros conquistarem a igualdade de direitos civis em todos os Estados.

No Brasil, ninguém disse nada, ninguém planejou nada, não houve reflexão ou teoria. Os negros ficaram livres para serem miseráveis. Desceram das senzalas e subiram para as favelas.

Pois. Havendo agora o voto e havendo a liberdade, o que ainda falta ao brasileiro? Muitos dizem que o brasileiro precisa “lutar por seus direitos”. Mas ele luta. Em poucos países luta-se tanto quanto no Brasil. O brasileiro protesta, o brasileiro reclama, o brasileiro grita.

Dia desses tive uma pequena epifania sobre o que nos falta. Vou contar. No lado de cima do Equador, o ano letivo termina em junho. É como no Brasil, de verão a verão, só que no Brasil o verão começa convenientemente no fim do ano. No Hemisfério Norte, o ano fica de viés. É estranho.

Mas, como dizia, terminou o ano letivo e a escola do meu filho chamou-nos, aos pais, para uma singela cerimônia de encerramento das aulas. Meu filho está na segunda série. Diante de nós pais, a professora reuniu as crianças em volta dela. Elas sentaram-se no chão, de pernas cruzadas de índio. A professora fez um breve discurso:

– Vocês estão aprendendo matemática, estão aprendendo a escrever, estão aprendendo a pensar – aí ela apontou o indicador para o teto e acrescentou: – e estão aprendendo a ser bons cidadãos.

Aquilo reboou na minha cabeça. Saí da escola pensando nisso. Eles têm entre sete e oito anos de idade e ouvem que precisam se tornar bons cidadãos.

Cidadão, cidadania, cidade. O homem se civiliza, fixa-se à cidade, reúne-se em multidão e, para que todos possam conviver em harmonia, estabelece regras, define limites. Faz a lei.

A lei existe para que possa haver convivência. Quem respeita a lei respeita os outros seres humanos. Quem respeita a lei pode viver na cidade: é cidadão.

Não, o voto não é nossa única arma. Nem é a maior. O respeito mútuo decerto que é. É o respeito que sempre tem de estar à mão, na cabeça e no coração.

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