sábado, 4 de junho de 2016



04 de junho de 2016 | N° 18547 
ANTONIO PRATA

RESOLUÇÃO DE ANO VELHO

Na última segunda-feira, eu acordei com um ímpeto digno de primeiro de janeiro, me olhei no espelho e decidi dar dois passos fundamentais rumo à saúde física e mental: parar de fumar e de escrever sobre política. Hoje é sábado é há seis dias não toco no Marlborão nem no Michelzinho. Estou contente.

Fumei um maço, diariamente, dos 16 aos 22 anos. Eu era infeliz – e sabia. Nicotina é a droga mais estúpida que existe. Depois de fumar um cigarro, ninguém se sente mais à vontade pra dançar chá-chá-chá, ninguém deita na cama comendo Fandangos com Leite Moça, ouvindo No woman no cry e pensando que finalmente entendeu o significado da palavra “epifania”. 

O único prazer da nicotina é cessar a aflição causada pela ausência da nicotina. É mais ou menos como ter saudade de um paralelepípedo e precisar tocar no paralelepípedo pra passar a saudade. A diferença é que tocar num paralelepípedo não causa câncer de dedo e fumar causa câncer de tudo, sem falar nos dentes amarelos, no cheiro ruim, no pigarro, na falta de fôlego, olfato, paladar e no risco de cair do 14º andar metendo meio corpo pra fora da janela por causa das crianças.

Como disse, parei de fumar aos 22, mas em algum momento entre o elogio à mandioca e o “sê-lo-ia” resolvi dar um trago, um traguinho só – o que é que tem? –, pra relaxar. Mais ou menos na mesma época, comecei a escrever sobre política. Foi uma derrapada muito parecida com a do cigarro: uma crônica, uma croniquinha só – o que é que tem? –, pra desopilar. Desde então, venho tocando diariamente no paralelepípedo e semanalmente nos velociraptors. O fôlego só piora e o gosto na boca é terrível.

Sobre o segundo vício, podem argumentar que talvez seja importante, na atual conjuntura, apontar o teclado pra Brasília. Não, não é. Quanto mais escrevo sobre a crise, mais a crise se aprofunda. Se meu complexo de inferioridade sofresse de um delírio de grandeza, eu acreditaria até que Deus lê meus textos e faz exatamente o contrário do que eu gostaria. Por alguma razão, no entanto, semana após semana eu sigo fumando e opinando. Até tento esboçar um texto sobre o outono, sobre correr no parque, sobre o Fernando Pessoa ou as incríveis microcervejarias brasileiras, mas é só bater o olho no jornal pra me atolar na culpa. O país se desmilinguindo e você não vai fazer nada, Antonio?

Pois hoje eu não vou, não. Sentei pra escrever a crônica e quando deu aquela vontade de fumar e de falar do Eduardo Cunha eu fui ouvir música. O shuffle escolheu While my guitar gently weeps, dos Beatles. Dei um Google. Sabe de quando é? De 1968. No ano em que mataram Martin Luther King, em que começou a guerra do Vietnã, em que o Brasil balançava de cabeça pra baixo, pendurado num pau de arara, lá no estúdio da Abbey Road George Harrison cantava: “Eu olho pra vocês todos/ Vejo o amor aí, adormecido/ Enquanto a minha guitarra chora de mansinho”.

É, amigos, parei. Hoje é sábado, está sol lá fora – esse sol mansinho, de outono –, vou correr no parque, vou tomar um banho e depois vou ler Fernando Pessoa, bebendo uma Índia Pale Ale da Júpiter. Brindarei à minha saúde, à de vocês e à do George Harrison. Adeus, velociraptors! Esfume-se, paralelepípedo!

Nenhum comentário: