quarta-feira, 2 de março de 2011


MARCELO COELHO

Um outro gago

Gays e esquerdistas encontram hoje menos a temer e dão menos medo que na década de 1950


A GAGUEIRA do rei George, tema do filme vencedor do Oscar deste ano, podia ser da mais exasperante e severa. Sabe-se, contudo, que a história de "O Discurso do Rei" não termina mal. Como observou o crítico
Inácio Araújo no domingo passado aqui na Folha, segue o modelo -sempre animador- do esforço individual e da superação.

Caso bem mais trágico de gagueira foi o do marinheiro Billy Budd, personagem de uma novela de Herman Melville (1819-1891).

Uma boa edição de "Billy Budd" saiu pela Cosac Naify (160 pág., R$ 56). Vale procurar também o DVD da ópera composta em 1951 por Benjamin Britten, seguindo de perto a obra de Melville.

Estamos a bordo do Indomável, um vaso de guerra britânico equipado com 74 canhões. O ano é 1797. A França já tinha decapitado o rei, e a Inglaterra se encarregava de refrear o ímpeto revolucionário para longe do seu território.

"Sob o manto da liberdade", os franceses "promovem a tirania": é o que cantam os oficiais do navio na ópera de Britten. Certamente, eles não estavam errados.

Mas os amantes da liberdade não se sentiriam bem sob o comando do capitão Edward Fairfax Vere. Não que ele fosse um tirano, inclinava-se à misericórdia e à justiça.

Açoites e humilhação eram, todavia, a rotina disciplinar nos navios daquela época, e o mestre de armas Claggart funcionava mais ou menos como o carcereiro-chefe da tripulação.

Ao perigo da Revolução Francesa, fora do navio, somava-se assim o inimigo interno, no meio dos próprios marinheiros. Casos de motim registravam-se na armada inglesa, e uma pequena rede de espionagem e delação tinha de ser organizada em cada navio para prevenir casos desse tipo.

Para piorar as coisas, faltava gente nos navios de guerra. O recrutamento forçado se institucionalizava. Entre os marinheiros tirados à força de um navio mercante, encontra-se uma verdadeira joia: Billy Budd. "Flor da beleza masculina", o rapaz transborda de entusiasmo e devoção pela causa britânica.

Só que "nada é sem falhas neste mundo", rumina o capitão Vere. O esplêndido Billy Budd tem um pequeno problema: é gago.

Uma ópera com um protagonista gago não é coisa que prometa muito. Mas Billy não gagueja sempre, só quando está nervoso. A música de Benjamin Britten poderá então fluir normalmente.

Normalmente é modo de dizer. Para quem não está preparado para o estilo do compositor (1913-1976), vale ressaltar a beleza da ária final de Billy Budd e a arte de Britten para criar climas gélidos e ventosos, marítimos e ameaçadores, na orquestra.

As partes de coro também são envolventes, e trazem algum descanso depois de muita vocalise virtuosística e áspera, uns ó-ó-ós sem fim, escritos especialmente para o companheiro de Britten, o tenor Peter Pears (que é o capitão Vere na montagem da BBC).

Voltando à história. O capataz Claggart não suporta (sabe-se lá por que motivos sexuais) a perfeição de Billy Budd; não aceita que alguém seja feliz naquele ambiente infernal. Decide armar uma intriga contra o belo marujo.

Billy é convocado pelo capitão do navio a dar explicações. Na hora de se defender, a gagueira triunfa. Desesperado, Billy Budd mata seu acusador. Não há o que fazer: a lei marcial exige que o rapaz seja condenado à morte.

No contexto da Guerra Fria, a ópera de Britten parece mostrar de que modo o pavor da revolução termina impondo violências contra os bem-intencionados.

A gagueira de Billy Budd, por outro lado, não deixa de representar o sufocamento de uma espécie de "motim interior", um bloqueio da capacidade de ouvir-se a si mesmo, e de fazer-se ouvir também.

Temas recorrentes numa época de repressão, tanto política quanto sexual. Os inimigos de Billy Budd querem livrar-se de dois fantasmas, o do desejo gay e o da revolução política. Gays e esquerdistas encontram hoje menos a temer -e dão menos medo- do que em 1950.

Mas é como se, em vez de liberação, o que fica fosse a necessidade de superar, de vencer barreiras, de atingir individualmente uma perfeição impossível. Quem é gay e quem não é passa horas na academia de ginástica; os gagos, como Billy Budd, se transmutam em rei George e conquistam o Oscar depois de muito treino e persistência; quanto aos esquerdistas, esses vão à ópera, ou embatucam de vez.

coelhofsp@uol.com.br

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