quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Filme expõe encantos de Martha Argerich
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA


Uma das cenas mais incríveis acontece logo no começo do filme e leva pouco mais que alguns segundos. Filmada de costas, Martha Argerich se aproxima de um piano, numa sala de ensaio.

Sem se sentar, desfere uma sucessão de escalas cromáticas com a mão direita, para cima e para baixo, com velocidade e fluência características, como se não fosse nada. Depois dá um sorriso e se afasta.

É bom rever a cena, depois, com a lembrança de um comentário feito ao final do documentário. Na música, é preciso se preparar 150%, diz ela, para chegar a um resultado de 60%. E o que mais vier é fruto do instante.

Vale dizer que aqui, também, neste filme de pouco mais de 60 minutos, dirigido por Georges Cachot em 2002 e agora lançado no Brasil (Biscoito Fino), muito do que passa por espontâneo terá tido 150% de preparação da pianista -seja pela circunstância específica, seja por uma vida inteira de dedicação.

Sedução

Que ela é uma das artistas mais carismáticas que já se viu não é qualquer novidade; mas o filme deixa à mostra um carisma de outra ordem, mais íntima, à medida em que se vai vendo e ouvindo essa argentina tão sedutora aos 62 anos de idade (hoje 67), falando à meia voz e olhando meio de lado para a câmera, envolta no seu manto preto Miyake e ladeada por jovens músicos de aparência levemente exótica e sugestivamente boêmia.

Outra cena: um bis em Zurique (Suíça), em 2001. Martha ataca a "Sonata" K. 141, de Scarlatti (1685-1757), um virtuosístico exercício de notas repetidas, no pulso mais rápido que jamais se imaginou. Com ela, não parece só o mais rápido, mas o mais certo e o mais natural.

É um dos raros momentos em que a dificuldade técnica transparece no rosto da pianista. Mas transparece do modo mais delicado e bem-humorado: num biquinho que ela faz com a boca, além de cantarolar as melodias.

Humor, aliás, é uma das qualidades que ela mais admira, inclusive na música: em mestres do período clássico como Beethoven e Haydn, assim como nos modernos Prokofiev e Shostakovich.

Suas risadas são irresistíveis. Parece servir de lastro para a loucura de uma vida exposta a platéia atrás de platéia, sob o risco permanente do desastre.

Mergulhar

"Se errar uma nota, eu morro", lembra de ter dito a si mesma, ajoelhada no banheiro de um teatro, aos nove anos de idade, antecipando uma lição do seu maior mestre, Friedrich Gulda (1930-2000). "Não vou errar", resolveu -e nunca mais errou. Sabe que não vai errar, por isso não erra.

Ao mesmo tempo, sente-se à beira do nada, a cada vez. "I have to... plonger" -"tenho de... mergulhar"-, comenta, misturando línguas. Só quando começa a tocar, está de novo em controle, a ponto de se deixar vulnerável, "porque é quando se está vulnerável que as coisas acontecem".

Um ensaio do "Concerto" de Schumann (1810-1856) é outro ponto alto do filme, que tem a virtude de exibir longos planos-seqüência, sem malabarismos.

Um segundo antes de começar, Martha olha para o alto, bufa, faz um espalhafato no teclado. Um segundo depois, concentra-se e ataca a música que ela toca como ninguém.

Mergulhada em Schumann, ela nos leva de roldão. Ninguém resiste a seus encantamentos. O filme é um filme é um filme, mas Martha é Martha é Martha e sai da tela para preencher nossa vida, com as paixões da música e da personalidade.

DVD - CONVERSA NOTURNA - MARTHA ARGERICH
Gravadora: Biscoito Fino
Direção: Georges Cachot
Quanto: R$ 42,90, em média
Avaliação: ótimo

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