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quarta-feira, 5 de novembro de 2008
05 de novembro de 2008
N° 15780 - DAVID COIMBRA
Uma noite de guerra
Não se vê um negro em Buenos Aires. Nem lembro de algum dia um negro ter jogado na seleção argentina. Poderia parecer prova de humanidade dos hermanos – alguém há de achar que por lá não ocorreu a importação de escravos africanos.
Ocorreu.
Até o século 19, havia negros a mancheias na Argentina, tantos que seu número chegava a um terço da população de algumas províncias. Mas eles foram dizimados. Se foi um genocídio sistemático ou não, eis algo que até hoje se discute por lá. O fato é que os negros praticamente desapareceram do país. Como?
Assim:
Na Guerra do Paraguai, o governo argentino promoveu o envio maciço de pelotões de negros para lutar contra o bem treinado exército paraguaio. Nada muito diferente do que fez o Brasil, bem entendido.
Aqui os negros também foram usados como bucha de canhão, e não apenas na Guerra do Paraguai. Mas, na Argentina, logo depois da guerra uma epidemia de febre amarela assolou Buenos Aires.
A população negra sobrevivente, que residia nos bairros de San Telmo e La Boca, ficou confinada nestes locais tornados insalubres pela peste. Os negros argentinos contaminavam-se uns aos outros e morriam feito vermes. Os que conseguiram evadir-se dos guetos homiziaram-se, quase todos, no Uruguai.
Além disso, a Argentina aboliu a escravatura quase meio século antes do Brasil, um ponto a favor dos hermanos. E a imigração européia igualmente começou bem antes, no início dos anos 50 do século 19, eliminando a mão-de-obra escrava. Dois a zero para eles. Desta forma, os negros sumiram de Buenos Aires.
Há uns dois anos, os argentinos realizaram um censo para descobrir qual era o tamanho da população descendente de africanos na capital. Concluíram ser de menos de 5%, a maioria ainda morando nos velhos bairros negros.
Esses bairros continuam reservados à população pobre da cidade, ainda mais empobrecida pelas crises econômicas do século 20. Assim, as ruas de La Boca são estreitas, os prédios velhos e mal-conservados, as pinturas das paredes descascadas. Típico bairro operário decadente.
No coração deste bairro pulsa a Bombonera.
No ano passado, era lá que eu estava, a fim de cobrir a primeira partida da final da Libertadores, entre Grêmio e Boca Juniors. Minha tarefa era acompanhar os torcedores gremistas. No deslocamento do aeroporto para o estádio e durante o jogo foi tudo bem, sem percalços.
Foi na volta que tudo aconteceu.
Terminado o jogo, enviei o material para Porto Alegre e comecei a descer as escadarias de pedra da Bombonera para ir embora. Tinha de encontrar os ônibus dos torcedores. Quando pus o pé no lado de fora do estádio, espantei-me.
O clima de belicosidade eletrizava a noite. Soldados da polícia militar argentina, vestidos de preto, as cabeças cobertas por capacetes, armados de pistolas, cacetetes e metralhadoras, protegidos por escudos, esses soldados formavam pelotões cerrados, fechavam ruas, tentavam dispersar os grupos de torcedores.
O aparato não intimidava os boquenses. Eles formavam bandos, atiravam pedras e garrafas nos policiais, e vez em quando ouvia-se o aterrador estouro de tiros. Estavam atrás dos torcedores do Grêmio e não pareciam dispostos a desistir, mesmo com a firme repressão policial.
Caminhava em meio àquelas ruas conflagradas temendo sobretudo que me atacassem e levassem o laptop do jornal, que carregava às costas, na mochila. Não achava os ônibus.
Perguntava aos policiais, e eles não sabiam dizer de onde partiriam os brasileiros. De vez em quando, a turbamulta assomava de uma ruela num vozerio agressivo, ameaçadores, furiosos, querendo a tudo romper e derrubar.
Quando enfim encontrei os ônibus, encontrei também notícias alarmantes: um grupo de brasileiros havia sido assaltado e espancado. O amigo de alguém tivera a perna quebrada e fora hospitalizado. Um ônibus fora atacado a tiros. Os policiais argentinos informaram que iam nos escoltar até a saída do bairro:
- Fechem as cortinas das janelas! Permaneçam todos agachados nos bancos!
Foi assim que o ônibus partiu, com as luzes apagadas, vagarosa e cautelosamente. Os passageiros todos em silêncio, abaixados, as cabeças entre os joelhos. Lá fora continuavam o som de tiroteio, os gritos e o estouro de pedradas e pauladas. Não resisti.
Abri a cortininha da janela e espiei. As ruas do bairro estavam desertas, mas vez ou outra alguém surgia no topo de um prédio e apontava para o ônibus, ou a janela de um apartamento se abria e eu supunha divisar o cano de uma arma.
A saída de La Boca foi uma operação militar. Ao chegar ao aeroporto de Ezeiza, tentei compreender o que acontecera. Porque, afinal, não havia motivo aparente para todo aquele conflito.
O Boca vencera o jogo e, ao que eu soubesse, não tinha ocorrido nenhuma confusão significativa entre as torcidas ou entre os jogadores. Por que, então, toda aquela loucura?
Assim é a Bombonera. Não acredito que algo semelhante esteja a espera do Inter ou de seus torcedores nesta quarta-feira, mas, tratando-se de La Boca e da Bombonera, é sempre bom se precaver.
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