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sábado, 3 de maio de 2008
04 de maio de 2008
N° 15591 - Luis Fernando Verissimo
A serpente
Na sua peça The Coast of Utopia, A Costa da Utopia, Tom Stoppard põe na boca de Michael Bakunin um pensamento sobre a queda que condenou o Homem à infelicidade.
"Uma vez", diz Bakunin, "há muito tempo, no começo da História, éramos todos livres. O Homem integrava-se com sua natureza e, portanto, era bom. Vivia em harmonia com o mundo. Não existia conflito. E, então, uma serpente entrou no jardim, e o nome da serpente era..."
Para o anarquista Bakunin, o nome da serpente que nos roubou do paraíso era "Ordem". Organização social. "O mundo já não estava integrado. A matéria e o espírito se separavam. O Homem não era mais inteiro. Era impelido por ambição, cobiça, ciúmes, medo...
O conflito tornou-se a condição da sua vida, o indivíduo contra seu vizinho, contra a sociedade, contra ele mesmo. A Idade de Ouro acabou." Aí, segundo Bakunin, a desordem criara a serpente. "Como criar uma nova Idade de Ouro e tornar o Homem livre outra vez? Destruindo o que destruiu sua liberdade." A ordem.
Para um socialista, ao contrário, organização social é o que salva o Homem da sua pior natureza. Evita o conflito e traz a harmonia. Portanto, "Ordem" não é um bom nome para a serpente.
Já, para um fascista, só a submissão a uma idéia e a uma autoridade integradoras resgata a felicidade. Portanto "Ordem" também é elogio, não nome de serpente. E, para um liberal, se a serpente nos tirou do paraíso mas inaugurou o homem competitivo, então viva ela, seja qual for o seu nome.
Que nome merece a serpente? Acho que um bom nome seria "Precisão". Foi quando desenvolveu o dedão opositor e se tornou capaz de, primeiro, catar pulgas com mais eficiência e eventualmente esgoelar o próximo e fabricar e empunhar implementos sem deixar cair - enfim, quando se tornou preciso - que o Homem começou a sair do paraíso.
Acabou a Idade de Ouro da inabilidade digital, que nos igualava aos outros animais e nos impedia gestos especulativos, como o de segurar um cristal contra o Sol e ficar filosofando sobre a luz decomposta em vez de se integrar com a Natureza como um bom bicho.
O dedão opositor está nas origens do arco e flecha, daí para o zíper e as centrais nucleares foi um pulo - no abismo. A nossa queda começou pelo polegar.
Na mesma peça, o Bakunin de Stoppard consola um amigo, desesperado com as seguidas derrotas do seu ideal socialista pelo reacionarismo. "A reação é apenas a ilusão ótica do rio que parece correr para trás, quando o rio corre sempre para o mar, que é a liberdade ilimitada e indivisível!" Um consolo para desesperados de todas as épocas.
Pai e filho
Ele tinha 65 anos e um dia surpreendeu todo mundo com a informação de que estava, finalmente, conseguindo falar com seu pai. Ninguém imaginava que ele ainda tivesse pai.
Alguns chegaram a pensar que o contato se dera numa sessão espírita. Mas não, o pai estava vivo. Casara cedo, tinha vinte e poucos anos quando o filho nascera. Por isso mesmo, nunca haviam se entendido muito bem. Não tinham interesses em comum. Não tinham assunto.
- Agora temos - contou ele. - Estou finalmente podendo falar com o meu pai.
- Sobre o que vocês conversam?
- Remédios. Comparamos nossos tratamentos. "Qual é o seu beta-bloqueador?" "Está tomando o que para o colesterol?" "Experimenta este." E trocamos hemogramas. "A sua taxa de glicose está melhor do que a minha!" Essas coisas.
E contou que era comum os dois irem à farmácia de braços dados.
Mãe e filha
Ela contou que o conselho que recebeu da sua mãe, quando se casou, foi "Não seja inteligente demais, minha filha. Disfarce." E que a mãe disse que devia o sucesso do seu casamento à frase
"Eu não tenho cabeça para essas coisas complicadas, mas..." que usava como preâmbulo sempre que precisava dizer ao marido o que fazer. Segundo a mãe, para um casamento feliz, preâmbulo é tudo.
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