quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008



O MULATO VIEIRA, UMA HISTÓRIA DO FUTURO

O mulato Antônio Vieira nasceu em Portugal, em 6 de fevereiro de 1608, 400 anos atrás. Seu pai chegou a ser escrivão da Inquisição.

Quem quiser refrescar a memória sobre como agiam os inquisidores, veja o belo filme 'Goya', em cartaz nos cinemas de Porto Alegre. Vieira cresceu na Bahia. Tornou-se professor e padre jesuíta.

Ao longo da vida, comprou todas as brigas que lhe pareceram essenciais. Defendeu os judeus, os índios e os negros contra os donos do poder da sua época.

Ganhou fama com os 'sermões'. Antes do centroavante Adriano, foi chamado, por Fernando Pessoa, de imperador. Da língua portuguesa.

Passou por várias etapas, caiu em desgraça, levantou-se, virou diplomata e chegou a confessor da regente Luísa de Gusmão depois da morte de dom João IV. A Inquisição o acusou de heresia por ter previsto que Portugal comandaria o reino do futuro, um certo Quinto Império (tema da Mocidade Independente no Carnaval do Rio).

Talvez a Inquisição tenha confundido heresia com maluquice. Certo é que o padre Antônio Vieira nunca baixou as armas. Sabia recuar estrategicamente e conciliar. Mas não cedia nos seus princípios.

Por causa disso, foi perseguido, preso, desterrado e ridicularizado. Resistiu a tudo e a todos. Parece que no início era um aluno medíocre. Depois, tornou-se brilhante. Deve ser a prova de que ser o melhor pode vir com o tempo e com as oportunidades. Deixou cerca de 200 sermões e 500 cartas.

Era contra a escravidão, alegando que um dos reis magos era negro. Ainda assim, precisava driblar os adversários e, por vezes, tinha de contradizer-se. Um exemplo relativo aos índios: 'Não é minha tenção que não haja escravos, antes procurei (...) que se fizesse (...) [o] cativeiro lícito'. Não será isso que esconde o princípio da igualdade meramente formal?

Vieira procurava consolar os infelizes com argumentos que se prestam ainda hoje a preconceitos, distorções e álibis: 'Todos aqueles escravos que neste mundo servirem a seus senhores como a Deus (...) no céu, senão o mesmo Deus em pessoa, o que os há-de servir'.

Vieira foi um homem do seu tempo que defendeu mais os índios e os judeus do que os negros. Mesmo assim, com as limitações da época e do seu imaginário, deixou marcas impressionantes.

Num dos seus sermões mais belos, lamenta que os peixes comam uns aos outros: 'Não só vós comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.

Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos. Mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande'. Falta algo? Não.

Tudo está dito aí. Daria para ficar citando o padre Vieira sem cessar: 'Quem olhasse neste passo para a terra e para o mar, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer?

Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras.

Aos homens deu Deus uso da razão e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem uso, e os peixes o uso sem a razão'. Como diz o ditado, filho de peixe, peixinho é, se não der para ser tubarão.

Será que o padre Vieira seria a favor das cotas? O que acharia ele da franqueza deste meu leitor sem papas na língua: 'Sou a favor das cotas. Graças a elas, os brancos se sentem ainda melhores'.

juremir@correiodopovo.com.br

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