sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008



08 de fevereiro de 2008
N° 15504 - Paulo Sant'ana


O Rei da Voz


Há coisas que faço automaticamente, sem saber como as aprendi. Não posso entender por exemplo como sei andar de bicicleta, se um dos traumas que tenho é o de não ter possuído bicicleta quando era criança.

Depois de adulto, aprendi a dirigir no jipe da delegacia onde eu era inspetor de polícia, peguei na direção do DKW da minha namorada, depois de casado consegui comprar um Corcel zero, nunca mais quis saber de bicicleta.

Então como é que eu sei andar de bicicleta, se ao que me lembre nunca qualquer amigo me emprestou a sua para dar uma voltinha? Andei três dias perscrutando este mistério, mas não o solvi.

Um outro enigma que me persegue e que ontem recrudesceu a minha curiosidade é como eu consegui gravar na memória mais de mil letras de música popular. Inteiras, porque incompletas eu guardo outras mil no meu computador cerebral.

Acontece que a Rádio Gaúcha relembrou outro dia o aniversário de nascimento do cantor Francisco Alves, o Rei da Voz. E recordou algumas músicas do grande Chico. De repente, me vieram à memória várias letras de músicas do Chico Alves.

Eu nunca mais as tinha cantarolado, são antigas, mortas, arquivadas, mas não sei como se conservaram no meu depósito cerebrino e de repente emergiram na lembrança, após 50 anos:

Quanto mais quero esquecê-la
Mais eu a trago comigo
Por que é que fui gostar
Da mulher do meu amigo?
O casamento é sagrado
Eu tenho de respeitar
Quanto já tenho sofrido
Pra não destruir um lar
Pra aumentar a minha mágoa
Sei também que ela me quer
Com tanta mulher no mundo
Fui gostar desta mulher.

É cafona a letra, está incompleta, mas chega a ser fantástico que ela redesabroche assim nos meus miolos, se só quando tinha 10 anos de idade é que eu a cantava.

Faz cerca de 50 anos que Francisco Alves morreu. Sua voz era tão potente, que ele era capaz de cantar para um vasto auditório sem microfone. Além de cantor, era vendedor de automóveis. E o sonho maior de um rapazinho de 20 anos, chamado Noel Rosa, era ter uma baratinha. Chico Alves era comerciante.

Deu a baratinha zero quilômetro para Noel Rosa em troca de 50 músicas do grande poeta, que se comprometeu a compô-las em breve tempo. Noel Rosa fazia duas músicas por dia, foi fácil quitar a baratinha em um ano. Daí que Francisco Alves entrou para a história também como compositor, parceiro de Noel Rosa.

Mas não tem explicação que, quando eu tinha seis anos de idade, só dali a 20 anos seria inventado o transistor, meu pai não me dava acesso ao seu aparelho de rádio, eu tenha aprendido a letra de 50 músicas do Chico Alves e retenha bem nítida na memória a característica musical de abertura do programa do Rei da Voz na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, um som que inundava o Brasil todos os dias ao meio-dia em ponto:

Porém, neste abandono interminável
No espinho de tão negra solidão
Eu tenho um companheiro
inseparável
Na voz do meu plangente violão.

Naquele tempo, as comunicações que atingiam o país inteiro eram voltadas, ao contrário de hoje, para a música e a poesia. E nós, aqui em Porto Alegre, éramos prensados entre o cancioneiro nacional das rádios cariocas e o tango dramático das rádios portenhas.

(Crônica publicada em 29/09/99)

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