terça-feira, 4 de dezembro de 2007



04 de dezembro de 2007
N° 15438 - Cláudio Moreno


Espelho, espelho meu

Ao contrário do animal, o homem não nasce pronto para participar de sua espécie. Para que isso aconteça, é necessário que ele aprenda a falar, a caminhar e, por estranho que pareça, a identificar sua própria imagem quando a vir refletida ou representada.

Eu só começo a ser alguém no momento em que descubro que aquela pessoa que me olha no espelho sou eu mesmo, e não um estranho qualquer; meu rosto passa a ser então familiar e inconfundível, exigência para quem vive numa civilização visual como a nossa.

Em contraste, em certos povos primitivos da África e da Amazônia, que são comunidades sem espelhos, o indivíduo tem uma vaga noção de como é sua aparência; quando vê fotos da tribo, identifica amigos e parentes, mas jamais a si próprio.

Para nós, escravizados pela imagem, fica difícil imaginar como seria uma vida assim, mas uma velha história popular da Coréia pode dar uma idéia mais concreta: um humilde vendedor de panelas vivia numa remota aldeia das montanhas; um dia a sorte lhe sorriu nos negócios e ele teve de viajar até a cidade imperial, onde ia fechar uma venda substancial.

Quis comprar uma lembrança para a mulher; no mercado, recomendaram-lhe que levasse um espelho, objeto que ele desconhecia, mas que lhe asseguraram ser a novidade do momento.

Quando chegou em casa, não disse nada à mulher, pois pretendia fazer-lhe uma surpresa no dia seguinte; ela, no entanto, cedendo a uma compulsão muito comum entre as mulheres de antigamente, revistou o seu alforje e encontrou o presente. Ao desembrulhá-lo, viu uma desconhecida que a encarava desdenhosamente de dentro da moldura.

Furiosa, acusou o marido de andar com o retrato de uma prostituta velha e mal-encarada; o mercador, intrigado, olhou para o espelho e, por sua vez, enxergou um homem bem apessoado, que só podia ser algum amante de sua cara-metade.

A gritaria do casal atraiu o juiz da aldeia, o qual, por sua vez, ao examinar o objeto que tinha causado a discussão, levou um choque ao ver um funcionário do Imperador, com suas vestes oficiais, que o observava com um olhar severo. Talvez fossem substituí-lo, e aquele, quem sabe, era o novo juiz...

Estamos muito distantes daqueles ingênuos aldeões, mas nosso comportamento diante do espelho não é nada diferente. Quando olho para ele, o que enxergo é apenas um produto do que se passa em minha mente - desejos, expectativas, temores.

Se estou bem, ou desanimado, ou vitorioso, ou derrotado, é assim que vou me ver. Há jovens que se acham velhas, magras que se acham gordas, belas que se acham feias - ou vice-versa - , e tanto faz, porque grande parte do que vemos no cristal é o reflexo daquilo que estamos sentindo.

A imagem que aparece ali, deformada pela minha percepção, é apenas um reflexo parcial da aparência que eu penso ter. Nunca vai ser definitiva - nem poderia, porque, afinal, sou mutável, incompleto e hesitante como qualquer ser humano.

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