terça-feira, 1 de fevereiro de 2022


01 DE FEVEREIRO DE 2022
NÍLSON SOUZA

Miasmas

Às vezes parece mesmo que a História se repete - se como tragédia, farsa ou outra coisa, depende do cristal com que se mira. Veja-se, por exemplo, a atual resistência à vacina por parte de parcela aparentemente minoritária, mas ainda expressiva, da população brasileira, no momento em que voltam a cair três simbólicos aviões por dia lotados de vítimas da covid-19.

A célebre Revolta da Vacina ocorreu em 1904, pouco mais de um século atrás, muito tempo para a nossa breve existência individual, pouco para a memória coletiva de um povo. O Rio de Janeiro, então capital e umbigo do Brasil, começava a ganhar fama mundial como "cidade pestilenta" porque morriam diariamente dezenas de pessoas por febre amarela, varíola, malária e tuberculose, em meio às péssimas condições sanitárias do maior aglomerado urbano do país.

Médicos e cientistas foram convocados para equacionar o problema. Mas, como ocorre com qualquer colegiado, nem todos chegaram à mesma conclusão. O grupo da cloroquina achava que os males da cidade provinham dos miasmas emitidos pelos pântanos localizados nas periferias da metrópole. Esses odores pútridos, na visão da ala simplista, é que contaminavam a população. Daí surgiu a proposta de uma reforma urbanística comandada pela elite que expulsou os pobres para os morros e provocou grande ressentimento.

Já a ala científica, liderada pelo sanitarista Oswaldo Cruz, concentrou-se na erradicação das causas de três doenças principais: varíola, febre amarela e peste bubônica. Muito foi feito, porém, no ritmo do autoritarismo vigente na época: para combater a febre amarela, brigadas mata-mosquitos invadiam as casas e até ordenavam a demolição de prédios; para eliminar a peste bubônica, promoviam-se competições premiadas de captura de ratos; e, para enfrentar a varíola, o governo ordenou uma campanha de vacinação obrigatória.

Foi o estopim da revolta. Formaram-se ligas antivacinas e o movimento assumiu tal proporção que culminou em quebra-quebra, dezenas de mortos e feridos, uma tentativa de golpe contra o presidente, centenas de degredados para o Acre e Estado de sítio.

No final, como atestam os registros históricos, venceu a ciência, mas o negacionismo, as notícias falsas e as teorias da conspiração permaneceram como miasmas infiltrados em todos os setores da sociedade brasileira, inclusive entre algumas autoridades médicas e dirigentes políticos.

NÍLSON SOUZA

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