sexta-feira, 30 de julho de 2021


30 DE JULHO DE 2021
DAVID COIMBRA

Caiu a ficha

Tem uma pergunta que useira e vezeiramente é feita pelos repórteres de TV aos vencedores de alguma competição e que vem sendo bastante repetida na Olimpíada de Tóquio. Gosto dessa pergunta:

"A ficha já caiu?"

A resposta é sempre a mesma: a ficha ainda não caiu. Quer dizer: o conquistador está perplexo com sua própria conquista, e pouco do frêmito do povo embevecido e agradecido chegou a ele.

Trata-se de uma resposta modesta, como bem cabe a um vencedor. Quer dizer: ele venceu, mas continua sendo a pessoa que sempre foi. A vitória não teve tempo de modificá-lo, ele nem sequer compreendeu o tamanho da sua conquista.

Queria um dia responder a essa pergunta. É um desejo que acalento. Eu cercado de repórteres entre sorridentes e ansiosos, os microfones apontados para mim, aí um deles, de preferência da Globo, faz a pergunta que sempre quis ouvir:

- David: a ficha já caiu? 

Eu fingiria pensar na resposta, mas na verdade já a tenho pronta e ensaiada:

- Sabe que não? A ficha realmente não caiu. Hoje de manhã, seis horas, acordei e fiz o que faço todos os dias: tomei meu desjejum com frutas da estação e saí para distribuir alimentos para os meninos pobres da minha rua. Tenho uma relação muito bonita com eles, sabe? Eu os trato como se fossem meus filhos. Acho que temos obrigação de ser solidários. Ver a gratidão nos rostinhos deles quando lhes dou um simples sanduíche é a minha maior recompensa. Bem. 

Depois, fui fazer meus exercícios matinais. Ioga. Precisamos cuidar do corpo. Em seguida, parei tudo e fui meditar. É muito bom sentir aquela paz e se afastar de toda a agitação do mundo. A vida não é só produzir e produzir e produzir. Só agora, quando vocês chegaram, é que pensei: eu venci! Eu sou o número 1! Que loucura isso. Chega a ser perturbador para quem tem um passado de dificuldades como eu. Mas é muito positiva toda essa energia que sinto das pessoas em relação a mim. Só posso dizer uma coisa a todos que estão me assistindo neste momento: jamais desistam dos seus sonhos. Jamais!

Considero o meu discurso perfeito: mostra como sou esforçado, acordando às seis da manhã, e, ao mesmo tempo, elevado, meditando e tudo mais. Mostra como me preocupo com os mais necessitados, como sou humilde e, por fim, dá às pessoas um conselho inútil, mas que demonstra a minha força de vontade: "Jamais desistam dos seus sonhos".

Há um outro trecho do meu discurso que me empolga: a parte da energia. É bom imaginar raios invisíveis saindo das pessoas, vindo em minha direção, me tornando mais forte. É um pensamento agradável. Se milhares de pessoas, se um país inteiro torcer por mim, vou me dar bem. O problema é se torcer contra mim. Bem, mas isso não acontece com um cara que tem de responder se a ficha já caiu. Ah, não.

Ser perguntado sobre isso, sobre a ficha cadente, é o que basta para uma pessoa se sentir realizada. Acredite em mim: não desisto dos meus sonhos. Graças a sua energia positiva, ainda vou responder se a ficha já caiu.

DAVID COIMBRA

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