sábado, 24 de julho de 2021


24 DE JULHO DE 2021
ELIANE MARQUES

ORIKI PARA NÓS MESMAS

Afro-colombiana, afro-brasileira, africana-venezuelana. Até quando seremos hifenizadas? Nayyrah Waheed, em afroamericana ii, enuncia que, ao perder um continente inteiro de sua memória, diferentemente de outras americanas hifenizadas, seu hífen se fez de sangue, fezes e ossos. Porém, seu hífen é tão nosso quanto o nosso é dela, o que permitiu a Lélia Gonzalez construir a categoria da amefricanidade. Em Por um Feminismo Afro-Latino-Americano, ela a discute assentada na ideia de que a formação histórico-cultural do Brasil, mais por ordem do inconsciente que por outro fator, está longe da encenada.

Lélia propõe uma América Africana cuja latinidade inexistente teve trocado o T pelo D para se assumir Améfrica Ladina, feita não apenas de Negres, mas de todas as gentes. Com a Verneinung freudiana, a intelectual articula o racismo por denegação, em que o abafamento da ladino-amefricanidade se mostra como sintoma dominante. Os discursos que hierarquizam a cultura em erudita, popular e folclórica são também mostras da denegação.

A constituição da Améfrica Ladina num lócus privilegiado desse racismo, segundo Lélia, advém das experiências raciais de Portugal e de Espanha já que suas instituições nascem de lutas plurisseculares contra povos islamizados e negros. Enquanto os escravizados norte-americanos teriam as mãos amputadas se tocassem tambores, na região do Caribe e da América Latina, os senhores e, eventualmente, as senhoras, se inquietavam se não ouvissem da casa-grande os tambores da senzala. Racialmente estratificada, enfatiza Lélia, a Ibéria e sua descendência dispensaram a segregação aberta vez que a rígida hierarquia seria garante da superioridade branca.

A categoria amefricanidade, ancorada em modelos como o akan (Jamaica); iorubá, banto e ewe-fon (Brasil); e nos diversos modos indígenas anteriores às invasões, permite romper com as fronteiras de caráter territorial, linguístico e ideológico, incluindo as Américas do Sul, Central, Insular e do Norte em um arcabouço comum de resistência, reinterpretação e criação de novas formas de existir.

Em Oriki para Mim Mesma, a poeta cubana Georgina Herrera diz ser a fugitiva que abriu as portas da casa-grande e correu ao monte. Em Anamú y Manigua, a poeta porto-riquenha Mayra Santos-Febres enuncia que é sal, sal negro que entende Safo no sabor do osso próprio. No Dia Internacional da Mulher Negra Amefricana, ofereço a nós esses orikis, pois, se memórias tivemos apagadas, outras construímos.

ELIANE MARQUES

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