O que a Bahia tem
Estou na Bahia. O mar sussurra na varanda em frente ao hotel. É a velha Praia da Barra, onde o Rusticão - primeiro e infame donatário da Bahia - ergueu a Vila do Pereira, que os tupinambás devastaram, antes de devorá-lo num ruidoso banquete antropofágico. É minha primeira viagem; na verdade quase que a primeira vez que boto o narigão para fora de casa desde aquele famigerado 13 de março de 2020, quando a peste desabou sobre nós. E se aqui estou é não só porque já tomei as duas doses e sigo de máscara como também por estar a trabalho. Um trabalho sublime, por sinal: faço um livro sobre as chamadas joias de crioula, as maravilhosas peças preciosas de ouro e prata feitas e usadas por ex-escravas, forras e libertas, que as portavam como símbolo de sua luta, sua audácia e sua liberdade em terras escravistas.
Mas não é sobre isso que quero escrever. No momento em que minha mulher queima na lareira em Porto Alegre os parcos móveis que escaparam das chamas neste inverno da desesperança, e tirita de frio frente à taça de vinho tinto de sangue, eu aspiro a maresia, desfruto do tal cheiro louco de jasmim e escuto o farfalhar das ondas nas areias alvas. E penso, por isso, na relação dos gaúchos com os baianos.
Bom começar pela frase dita pelo Conde d?Eu, genro de Dom Pedro II, que assumiu o serviço sujo de massacrar o que restava da nação paraguaia quando o Duque de Caxias, enojado com a guerra, demitiu-se do comando do exército. Disse o conde: "Para o gaúcho só existem três classes de habitantes: o rio-grandense ou filho do país, o castelhano ou hispano-americano, e o baiano. O baiano - ou seja, qualquer um que não tenha nascido no Rio Grande - é um ser inferior porque não sabe manejar bolas nem laço, não se tem por centauro e não entende como desonra andar a pé".
Talvez por isso, o gaúcho general Osório desfez o batalhão dos zuavos, formado por negros baianos, "gente forte e brava", que se vestia como os zuavos da Argélia. Osório transformou-os em serventes nos hospitais de campanha. As tropas gaúchas cantavam alto: "Mandai, mãe de Deus, mais uns dias de minuano, que é pra acabar com tudo o que é baiano".
Até 1999, eu nunca tinha vindo à Bahia. Já estivera em 55 países, mas não na "Boa Terra". Escrevi A Viagem do Descobrimento, meu primeiro livro, em 1998, quase todo passado nas praias de areias faiscantes e águas translúcidas de Porto Seguro sem jamais ter posto os pés lá. Mas, depois que vim a primeira vez, nunca mais deixei de vir - de preferência quando no Sul sopra o minuano. E toda vez que meu sotaque e/ou minha "fama" me denuncia e afirmam ou perguntam se sou gaúcho, tenho a reposta pronta na ponta da língua:
- Sou, mas não exerço.
Vá que eu esteja falando com um parente dos bravos zuavos, sequioso por vingança.
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