quinta-feira, 10 de janeiro de 2013


CONTARDO CALLIGARIS

Então, era só isso?

Mal conseguimos ver o tempo passar sem pensar que a nossa vida poderia ou deveria ter sido diferente

MICHAEL APTED é um diretor de cinema inglês, premiado e popular (participou das "franquias" James Bond e Nárnia). Em 1964, aos 23 anos, ele fez um filme para a televisão inglesa, chamado "7 Up" (de sete para cima, com um trocadilho com o nome de um refrigerante), no qual entrevistou 14 crianças de sete anos, de origem social variada, perguntando quais eram seus sonhos, planos e desejos. Ele prometeu que voltaria a entrevistar as crianças a cada sete anos.

Apted manteve sua promessa. Entrevistou o mesmo grupo aos 14 anos, aos 21, aos 28 etc. A cada filme, os entrevistados comentavam suas repostas anteriores, ou seja, mediam as mudanças em sua vida.

Na semana passada, estreou, em Nova York, "56 Up": as crianças de 1964 (todas vivas) têm hoje 56 anos. Para ter uma ideia do conjunto e do último documentário, veja trechos no site da CBS: http://migre.me/cHQ6k.

A intenção inicial de Apted era documentar, ao longo de décadas, as consequências das diferenças econômicas e de classe. De fato, a mobilidade social existiu, mas não foi grande. Os mais ricos, que estudavam nas melhores escolas, foram para as melhores universidades e, hoje, estão, como se diz, bem de vida. Os mais pobres (alguns vinham de uma espécie de asilo para crianças carentes, outros, do East End de Londres) tiveram uma vida mais dura. Em suma, tudo tocante e mais ou menos previsível, salvo a sensação com a qual fiquei ao sair do único cinema de Manhattan em que o filme está passando, o IFC Center, na Sexta Avenida, na altura de 3rd Street.

Quase em frente ao IFC, do outro lado da avenida, está o Blue Note, que, desde os anos 1980, é um templo do jazz nova-iorquino. Deixando o cinema, deparei-me com o letreiro do clube: a "blue note" é aquela nota que é cantada ou tocada meio tom abaixo do que seria esperado e confere, portanto, à música e às letras uma dimensão de tristeza quase existencial (o "blues"). Por isso, alguns dizem que a "blue note" tem a ver com a vida nas plantações, sua dureza e a nostalgia de outro destino.

O trecho da Sexta Avenida de ambos os lados do cinema IFC fica animado até muito tarde: há dois sex shops e cinco ou seis estúdios de tatuagem e piercings. Para quem passar por Nova York e quiser se aventurar por lá: nenhuma preocupação, não há perigo de ser assaltado.

Mas há outros perigos, sobretudo se você já tiver esbarrado no letreiro do "Blue Note", depois de assistir ao documentário de Michael Apted. No meu caso, aconteceu o seguinte: fiquei parado, na calçada, intensamente triste, sem saber por quê. As únicas palavras que vinham à minha cabeça eram: "Então, era isso?".

Cuidado: nenhum dos entrevistados de Apted, nem na infância nem na juventude, expressou desejos extravagantes. A maioria, de um jeito ou de outro, teve a chance de tentar realizar seus sonhos. Claro, alguns escondem suas dificuldades (de nós e de si mesmos), mas, no conjunto, a vida não foi propriamente cruel com nenhum dos 14.

Quase todos tiveram amores, filhos, alguma realização; um construiu uma bonita fazendola, outro comprou uma casa de férias na Espanha e outro, que fracassou na vida, foi eleito representante de sua comunidade. Então, qual é a razão da "blue note" que ressoou em mim?

Talvez seja a sensação de que a vida vai (aos poucos, de sete em sete anos) e que poderia ter sido outra. Mas será que poderia? E outra como?

Os estúdios de tatuagem e os sex shops da Sexta Avenida parecem sugerir que há vidas que, à diferença da nossa e da dos entrevistados de Apted, queimam rápido, sem se resguardar; mas basta entrar nas lojas para descobrir que nada aí dentro é "extremo" -o ideal de uma vida intensa, como um único grande e curto fogo de artifício, mal tem existência própria, mas é apenas o efeito da nossa nostalgia de "outra coisa".

Só há uma vida: a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal conseguimos viver sem imaginar que ela possa ou deva ser "outra"?

É uma aflição moderna, pós-romântica. Imagine que Emma Bovary e Anna Karenina tenham se juntado, desistido de complicar sua vida com amantes e sonhos, e transferido todas suas aspirações para seus filhos, ou seja, para nós. Rebentos dessas duas maravilhosas mulheres, como poderíamos achar que o que vivemos é suficiente? Como poderíamos ver o fim da vida se aproximando sem resmungar: "Então, era só isso?".

ccalligari@uol.com.br

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