CONTARDO
CALLIGARIS
Então, era só isso?
Mal
conseguimos ver o tempo passar sem pensar que a nossa vida poderia ou deveria
ter sido diferente
MICHAEL
APTED é um diretor de cinema inglês, premiado e popular (participou das "franquias"
James Bond e Nárnia). Em 1964, aos 23 anos, ele fez um filme para a televisão
inglesa, chamado "7 Up" (de sete para cima, com um trocadilho com o
nome de um refrigerante), no qual entrevistou 14 crianças de sete anos, de
origem social variada, perguntando quais eram seus sonhos, planos e desejos. Ele
prometeu que voltaria a entrevistar as crianças a cada sete anos.
Apted
manteve sua promessa. Entrevistou o mesmo grupo aos 14 anos, aos 21, aos 28 etc.
A cada filme, os entrevistados comentavam suas repostas anteriores, ou seja,
mediam as mudanças em sua vida.
Na
semana passada, estreou, em Nova York, "56 Up": as crianças de 1964 (todas
vivas) têm hoje 56 anos. Para ter uma ideia do conjunto e do último documentário,
veja trechos no site da CBS: http://migre.me/cHQ6k.
A
intenção inicial de Apted era documentar, ao longo de décadas, as consequências
das diferenças econômicas e de classe. De fato, a mobilidade social existiu,
mas não foi grande. Os mais ricos, que estudavam nas melhores escolas, foram
para as melhores universidades e, hoje, estão, como se diz, bem de vida. Os
mais pobres (alguns vinham de uma espécie de asilo para crianças carentes,
outros, do East End de Londres) tiveram uma vida mais dura. Em suma, tudo
tocante e mais ou menos previsível, salvo a sensação com a qual fiquei ao sair
do único cinema de Manhattan em que o filme está passando, o IFC Center, na
Sexta Avenida, na altura de 3rd Street.
Quase
em frente ao IFC, do outro lado da avenida, está o Blue Note, que, desde os
anos 1980, é um templo do jazz nova-iorquino. Deixando o cinema, deparei-me com
o letreiro do clube: a "blue note" é aquela nota que é cantada ou
tocada meio tom abaixo do que seria esperado e confere, portanto, à música e às
letras uma dimensão de tristeza quase existencial (o "blues"). Por
isso, alguns dizem que a "blue note" tem a ver com a vida nas plantações,
sua dureza e a nostalgia de outro destino.
O
trecho da Sexta Avenida de ambos os lados do cinema IFC fica animado até muito
tarde: há dois sex shops e cinco ou seis estúdios de tatuagem e piercings. Para
quem passar por Nova York e quiser se aventurar por lá: nenhuma preocupação, não
há perigo de ser assaltado.
Mas
há outros perigos, sobretudo se você já tiver esbarrado no letreiro do "Blue
Note", depois de assistir ao documentário de Michael Apted. No meu caso,
aconteceu o seguinte: fiquei parado, na calçada, intensamente triste, sem saber
por quê. As únicas palavras que vinham à minha cabeça eram: "Então, era
isso?".
Cuidado:
nenhum dos entrevistados de Apted, nem na infância nem na juventude, expressou
desejos extravagantes. A maioria, de um jeito ou de outro, teve a chance de
tentar realizar seus sonhos. Claro, alguns escondem suas dificuldades (de nós e
de si mesmos), mas, no conjunto, a vida não foi propriamente cruel com nenhum
dos 14.
Quase
todos tiveram amores, filhos, alguma realização; um construiu uma bonita
fazendola, outro comprou uma casa de férias na Espanha e outro, que fracassou
na vida, foi eleito representante de sua comunidade. Então, qual é a razão da "blue
note" que ressoou em mim?
Talvez
seja a sensação de que a vida vai (aos poucos, de sete em sete anos) e que
poderia ter sido outra. Mas será que poderia? E outra como?
Os
estúdios de tatuagem e os sex shops da Sexta Avenida parecem sugerir que há vidas
que, à diferença da nossa e da dos entrevistados de Apted, queimam rápido, sem
se resguardar; mas basta entrar nas lojas para descobrir que nada aí dentro é "extremo"
-o ideal de uma vida intensa, como um único grande e curto fogo de artifício,
mal tem existência própria, mas é apenas o efeito da nossa nostalgia de "outra
coisa".
Só há
uma vida: a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal conseguimos viver sem
imaginar que ela possa ou deva ser "outra"?
É uma
aflição moderna, pós-romântica. Imagine que Emma Bovary e Anna Karenina tenham
se juntado, desistido de complicar sua vida com amantes e sonhos, e transferido
todas suas aspirações para seus filhos, ou seja, para nós. Rebentos dessas duas
maravilhosas mulheres, como poderíamos achar que o que vivemos é suficiente?
Como poderíamos ver o fim da vida se aproximando sem resmungar: "Então,
era só isso?".
ccalligari@uol.com.br
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