quinta-feira, 10 de janeiro de 2013



10 de janeiro de 2013 | N° 17308
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES (interino)

A bagana de Siza

Uma tarde, dias depois da inauguração do Museu Iberê Camargo, fiquei observando o arquiteto Álvaro Siza. O português estava sentado sozinho na mureta do café, ao lado do museu, mirando o Guaíba. Fumou um cigarro até o toco e jogou a bagana na rua.

Depois, virou-se, ergueu a cabeça e, com um canto de olho, examinou sua obra, o museu todo branco, como se tivesse sido coberto por um lençol gigante. Senti o cheiro da fumaça do cigarro de Siza.

Pensei como fumante: será que o genial Siza depende do cigarro para criar coisas como esse museu? Será que fuma sem parar diante da prancheta em branco, à procura de uma ideia que possa resultar em algo no concreto?

Os túneis de Siza no museu não têm colunas de sustentação. A sede do Masp, em São Paulo, também se ergue no vazio, com um vão livre de 74 metros. Você caminha uma quadra dentro do museu e não há nada sob seus pés além do piso sem colunas.

Um dia, olhando o Rembrandt que há ali, pensei que, se o prédio desabasse, a morte não seria tão ruim. Como já suspeitaram de que a tela não é autêntica, poderiam dizer: morreu olhando um falso Rembrandt.

Lina Bo Bardi, a arquiteta que desenhou o Masp, também fumava. Quantos cigarros consumiu riscando as garatujas que levaram à concepção do belo Masp?

Le Corbusier fumava, Niemeyer também fumou até depois dos cem anos. Arquitetos, dizem, sempre fumaram muito. Mas alguém vai dizer que jornalistas, engenheiros, operários, advogados também fumam bastante. Até médicos fumam.

Fumar esteve, até bem pouco tempo, associado à criação, à sensibilidade, à inspiração. Por quantas décadas tratamos o cigarro com tanta reverência e glamour.

Pois naquela tarde vi que o grande Siza também fumava, num ambiente de não fumantes. Ninguém fumava na volta. Só Siza e eu. Até aquele dia, eu diria que a cabeça de Siza dependia da nicotina para criar.

Sou ex-fumante há exatos 16 meses. Não gostaria de ver Siza de novo sentado naquela mureta e fumando, porque hoje me constrange a desculpa de que alguém pode fumar por ser um criador.

Continuaria olhando para Siza com admiração, mas ficaria chateado se o visse jogando a bagana na sarjeta. Sou um convertido à obviedade que Cândido Norberto, um fumante, repetia sempre que aparecia na Redação:

– Fumar é uma das grandes imbecilidades da humanidade.

Niemeyer sabia e claro que Siza sabe disso. Relembro a cena do arquiteto na mureta e, como consolo, convivo até hoje com a fantasia de que aquele toco jogado por ele pode ter sido o de seu último cigarro, porque não há como se esquecer do último cigarro. E imagino como Siza já teria contado várias vezes esta história:

– Fumei meu último cigarro uma tarde em Porto Alegre. Eis que percebi que ao meu lado havia só mais um gajo que fumava. Me senti estranho. Só nós dois estávamos a fumar, e havia bastante gente por perto. Lembro bem que joguei o cigarro fora e olhei de novo para o museu, quando vi então que, ao pôr do sol, as luzes e as sombras da curva da última passarela eram diferentes do efeito que eu imaginara.

Siza continuaria:

– Lembro bem disso tudo, daquela tarde, daquele último cigarro. Lembro que as pessoas ficaram ali a conversar com alegria perto do café. Que, enfim, aquela curva da passarela ficara melhor do que eu pensara e que o sol morno começava a mergulhar no Guaíba.

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