03
de dezembro de 2014 | N° 18002
J.A.
PINHEIRO MACHADO
A gravata torta do vagabundo
celeste
A
gravata e a roupa, sempre, em todos os tempos, ocultaram a desfac¸atez - mas
tambe´m sublinharam virtudes. Anonymus, que usa gravata borboleta, gosta de
lembrar a censura de Fradique Mendes, o mais encantador dos personagens de Ec¸a
de Queiroz, numa carta reclamando do seu alfaiate por lhe ter cortado um casaco
que assentava ta~o bem “nas costas de uma cadeira de pau, como nas costas do
Comandante da Guarda Municipal, ou de um filo´sofo, se houvesse algum nestes
reinos”.
O
que queria Fradique Mendes: “Eu desejava que esse casaco me mostrasse a Lisboa
como sou: reservado, frio, ce´tico e inacessi´vel aos pedidos de meias-libras”.
A
roupa esta´ para o homem como a palavra para a ideia, exaltava-se Fradique,
querendo algo que ressaltasse suas qualidades e disfarc¸asse seus defeitos:
“Os
alfaiates ingleses ajeitam certas roupas que emanam virtude por todas as
costuras, justamente para esconder a velhacaria de quem as veste!”.
Vamos
combinar que não há mal algum em ter simpatia pela futilidade das aparências. Contardo
Calligaris lembra que, desde o fim do século 18, os dândis (que fizeram da elegância
um culto) tiveram uma função decisiva na revolução social moderna: “Se o critério
da elegância substituísse o da nobreza de berço, qualquer um poderia ser elite;
bastaria que fosse elegante”. Um exemplo seria Disraeli (que era um dândi). Tornou-se
primeiro-ministro da rainha Vitória porque sua elegância contou mais que sua
origem humilde (que, em princípio, impediria que ele tivesse acesso a tamanho
cargo).
Para
os dândis, no entanto, a elegância era “uma fineza rica”, com implicações
morais, como observou Calligaris. O cuidado frívolo com as aparências – do nó da
gravata ao corte das calças – seria também uma revolta do bom gosto contra as
feiuras do capitalismo incipiente.
Dos
meus tempos de repórter em Paris, lembro de Monsieur Lanvin, um dos homens mais
elegantes do se´culo 20, modelo de discric¸a~o e sobriedade, que nunca se
confundiu com velhacos engravatados. Numa rara entrevista, respondeu sobre como
se vestia:
“De
gravata, sempre. Exceto na praia”.
As
gravatas podem ser de seda ou de polie´ster, escuras ou escandalosas, caras ou
baratas, com no´ Duque de Windsor ou borboletas. Seguidamente, pendem do pescoc¸o
de gente digna e nobre. Lobo Antunes recorda algue´m assim, o homem que
iluminou sua vida, de gravata torta e casaco amassado:
“Charlie
Parker... Esse pobre, sublime, misera´vel, genial drogado que passou a vida a
matar-se e morreu de juventude, como outros de velhice. Cresci com um enorme
retrato dele no quarto. Usa uma gravata torta e um casaco amassado, e poucas
pessoas estiveram ta~o perto de Deus quanto esse vagabundo celeste”.
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