21
de dezembro de 2014 | N° 18020
ANTONIO
PRATA
Araminhos
Um dia, na quarta série, ao lado da cantina, o
Douglas me contou uma piada. Vou resumir, porque o espaço é curto e a piada é
péssima. Os americanos estavam construindo um super caça e tinham um problema:
nos testes, a asa sempre quebrava, no mesmo lugar. Os melhores engenheiros da
NASA foram chamados. Mexeram no projeto, usaram aço, titânio, até diamante:
nada resolvia.
Então
um servente que varria o hangar sugeriu fazerem vários furinhos no lugar em que
a asa costumava quebrar. Os furos foram feitos. A asa não quebrou. Quando
perguntaram pro cara de onde havia tirado aquela solução bizarra, ele
respondeu: “Simples, é a velha lógica do papel higiênico: nunca rasga na linha
picotada”.
Pois
é, eu avisei que a piada era péssima. Eu já achei péssima na quarta série e
continuo achando péssima, hoje. Por que, então, Jesus amado, guardo essa tralha
na memória, por tantos anos? Não foi um momento marcante. O Douglas nem era
muito meu amigo. Não me tornei engenheiro, brigadeiro ou fabricante de papéis
higiênicos. De tempos em tempos, contudo, a cena é reexibida na tela da
consciência, como um desses filmes mala que reprisam todo ano, desde 1988, na
Sessão da Tarde.
Ontem,
procurando o saca-rolhas numa gaveta da cozinha, lembrei de novo da piada. É
que encontrei, entre facas, escumadeiras e abridores de lata, um desses
araminhos de fechar pão. Eu não guardei o araminho na gaveta. Minha mulher
também não. Ou seja: ele deve ter caído ali um dia e, como ninguém jamais se
preocupou em tirá-lo, foi ficando. A piada do Douglas é como esse araminho,
pensei. Minha cabeça é uma gaveta cheia de araminhos.
Na
primeira série eu tinha um estojo jeans, com zíper. Durante as aulas, eu ficava
mordendo o zíper. Depois de um tempo, sentia os dentes meio que latejando.
Pareciam imantados. Alguns anos mais tarde, fui a uma praia em Ubatuba, a areia
estava coberta de sargaço e o cheiro (metálico?) daquelas algas fez com que eu
sentisse nos dentes o mesmo latejar. De vez em quando topo com uma praia cheia
de sargaços, sinto os dentes meio que latejando, resmungo, mentalmente, “ah lá
o negócio do zíper”, depois me esqueço.
A
minha amiga Letícia detesta peixe. Odeia tanto que chega a sentir gosto de
peixe em alimentos nada piscosos. Biscoitos de polvilho, por exemplo. É raro,
mas acontece. Faz 10 anos, desde que ela me contou dessa alucinação gustativa,
que sempre que eu como biscoito de polvilho, lembro da Letícia e da história do
peixe. Gosto da Letícia. Lembrar dela não é ruim. Mas ser obrigado a rememorar
a história sempre que como um biscoito de polvilho me parece um desvio
desnecessário, um pedágio mental que sou obrigado a pagar.
Qual
o sentido dessas três insignificâncias, dessas três caspinhas mentais que, pela
primeira vez, espano da minha cabeça e faço pousarem na folha do jornal? Não
tenho a menor ideia. Desconfio, aliás, que não haja sentido algum – eu, que sou
viciado em sentido, que acredito que tudo tem um porquê e um como e um pra
onde. Freud, Darwin, os genes, a ressonância magnética e a semiótica: eles explicam
as facas, as escumadeiras e abridores de lata, na gaveta, mas e os araminhos?
Por que, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos?
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