sábado, 13 de dezembro de 2014


14 de dezembro de 2014 | N° 18013
ARTIGOS - MOISÉS MENDES*

ENCONTREM GOLDSCHAGG

Há muito tempo não conto uma história edificante. Vou contar a história de Edmund Gold- schagg, um dos jornalistas que desafiaram o nazismo. Vou falar dele num momento em que parte da Alemanha e bom pedaço da Europa se voltam contra o multiculturalismo.

É uma reação conservadora que vem, reflui, volta e no fim parece se impor, na contramão de tudo o que se diz em nome da diversidade, das diferenças e da tolerância com as histórias de vida de gente que não é considerada igual à gente.

Condenar o multiculturalismo é rejeitar padrões, costumes, religiões que os povos levam com sonhos e malas para o país que os acolhe. Os alemães estão incomodados principalmente com os muçulmanos.

Goldschagg ajudou, com o jornalismo, a construir parte de um ambiente de convivência que está agora sob ameaça. Era editor do Münchener Post, o jornal que viu algo de diferente em Hitler desde seu surgimento como figura pública, em 1919, e avisou: esse homem é ameaçador.

Foi assim que o jornal de Munique testemunhou a germinação do nazismo e denunciou o que Hitler pretendia, muito antes de se tornar chanceler, em 1933. O jornal foi destruído naquele ano pelos nazistas, depois de advertir os alemães sobre o que os esperava.

Foi pelo Münchener que o país soube o que era o nazismo, desde o começo. O jornal teve acesso, em 1931, ao plano do que viria a ser a “solução final”, com a exclusão social e a posterior eliminação de judeus, ciganos, negros, pessoas com deficiências.

A história de Goldschagg e do jornal, contada pela jornalista brasileira Silvia Bitencourt, no livro A Cozinha Venenosa (Companhia das Letras), é a história da resistência ao nazismo. Quando o jornal foi destruído, Hitler pôde comemorar. Havia derrotado Goldschagg e seus repórteres.

Pois em 1945, encerrada a guerra, uma das primeiras tarefas que os americanos entregaram aos alemães da Baviera foi esta: encontrem Goldschagg. O jornalista poderia ter se exilado em outros países, como muitos fizeram, ou poderia ter sido assassinado.

Mas Goldschagg estava vivo, tinha 59 anos, era burocrata numa repartição de Friburgo. Os americanos queriam que ele ajudasse, com o jornalismo, a reconstruir a democracia alemã. Goldschagg topou. Doze anos depois de ter sido afastado do que sabia fazer, criou o Süddeutsche Zeitung, que começou a circular em 6 de outubro de 1945.

Na capa, o jornal anunciava que não era “um órgão de um governo ou de um partido, mas, sim, porta- voz de todos os alemães que estão unidos no amor à liberdade e no ódio ao Estado totalitário”.

Goldschagg havia sobrevivido ao nazismo e à tentação de sucumbir a um sistema que se dizia eterno e que atraiu adesistas de toda a imprensa. Ele ressuscitava, com parte da equipe de editores do Münchener, para ajudar a Alemanha a contrariar o que o nazismo pregava. O país com a autoestima destroçada seria refeito acolhendo também os diferentes que Hitler queria destruir.

Goldschagg publicava seu jornal em meio à total degradação do país ao fim da guerra. “Os cidadãos não tinham mais vontade política”, conta Silvia. “Entregavam-se, apáticos, a seu destino, que era lutar diariamente por um pedaço de pão.”

O jornalista morreu em 1971. Munique tem um museu com o seu nome. O poderoso Süddeutsche Zeitung é há muito tempo o diário com maior número de assinantes da Alemanha.

Goldschagg certamente ficaria chateado com o caminho de volta que alemães (e outros europeus) fazem ao discriminar turcos, indianos, afegãos, japoneses, latinos, negros, gays, ciganos.


Mas teria o consolo de que lá atrás, numa hora decisiva, ficou do lado certo – mesmo que se estabeleça, em algum momento, o dilema sobre o que é, afinal, o lado certo. Goldschagg sabia de que lado ficar. Com o tempo, graças a gente como ele, todos ficamos sabendo.

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