29
de dezembro de 2014 | N° 18027
DAVID
COIMBRA
Xingado pelos
leitores
Sócrates,
o filósofo, dizia de si mesmo que era um moscardo. Ou seja: uma dessas moscas
grandes, que estão sempre incomodando. Com isso, reconhecia ser um chato – por
causa, basicamente, de seu método investigativo da alma humana e da sociedade,
que ele chamava de “parto de ideias”.
Esse
parto funcionava assim: Sócrates abordava um cidadão ateniense na rua e
jogava-lhe no colo uma pergunta simples e conceitual. “O que é a sabedoria?”
“De onde vem a coragem?” O interlocutor respondia e Sócrates contestava, ele
era bom em contestar. O sujeito rebatia e ele contra-argumentava em cima de
alguma falha do seu raciocínio.
E
assim prosseguia com perguntas, respostas e novas perguntas, até chegar ao
núcleo da questão ou, o que era mais usual, enfurecer o outro, que só queria ir
ali ao mercado, comprar uma escrava nova que havia chegado da Trácia. Tenho
fortes suspeitas de que Sócrates foi morto, mesmo, mesmo, devido a essa sua
mania irritante.
Não
quero me comparar a Sócrates, por amor de Deus!, mas aprecio esse método da
busca da verdade pelo debate. Gosto do debate. Lanço uma ideia, vem alguém e a
critica, pergunto a razão e vamos em frente. Se o outro tem um bom estoque de
argumentos, pode muito bem me convencer de que estou errado, o que sói
acontecer, porque sói acontecer de eu estar errado. Mas, lamentavelmente, as
pessoas não debatem. Não ponderam sobre o que o outro está dizendo. Não
argumentam. Elas logo atacam o debatedor, acusam-no de ser isso ou, o que é
pior, aquilo e, aí, em vez de luzes, o que sobrevém são trevas.
Sei
qual é a razão disso. É porque as pessoas empunham bandeiras. Não é possível
compreender o que alguém está dizendo se você está tremulando uma bandeira. Por
esse motivo, não me filio a movimento algum, por justo que seja. O movimento
pode ter a minha simpatia, jamais a minha adesão, porque preciso ter espaço
para pensar. É uma deficiência minha, essa de ter tantas dúvidas.
Exatamente
devido à minha ignorância, queria debater com pessoas mais preparadas do que
eu. O problema é que essas pessoas mais preparadas são também as mais
suscetíveis à contestação. Elas ficam fulas à primeira crítica e já me chamam
de tudo o que é ruim, dizem até que eu era mau zagueiro. Triste. Não sou nem
jamais serei um Sócrates, mas suspeito de que eu seja um moscardo.
Teço
todo esse arrazoado para contar que muitos leitores me criticaram por ter
defendido a legalização do aborto, na coluna de sexta-feira passada. Mas foram
críticas educadas, algumas compassivas. Portanto, por amor ao debate e na busca
da luz, é para esses que escrevo agora. Escrevo para você que é contra o
aborto.
Acontece
que você não está sozinho. Todas as pessoas são contra o aborto. Quem seria a
favor? Que mulher gostaria de fazer um aborto?
O
aborto não é como a droga. A droga, em princípio, procura-a quem quer. A droga
é usada por prazer ou por curiosidade e, depois, pelo vício. A mulher que faz o
aborto não o faz porque deseja. Faz porque considera necessário.
Não
é agradável fazer um aborto, não é bom, não acrescenta nada ao status social de
quem faz, não lhe melhora a imagem, não o torna mais popular.
O
que quero dizer, com isso, é que a legalização do aborto não vai fazer com que
ocorram mais abortos.
Já a
ilegalidade não diminui o número de abortos. Submete-se a aborto quem achar que
precisa, e até com certa facilidade. O problema é que, devido à ilegalidade, as
milhares de mulheres que passam por aborto todos os anos têm de entregar-se a
médicos clandestinos, quando não curandeiros, ou então, o que é horrendo, elas
mesmas se ferem com objetos, como agulhas de tricô.
Então,
a questão do aborto ultrapassa quaisquer debates religiosos ou morais. É uma
questão de saúde pública. De sobrevivência e de dignidade de multidões de
mulheres. Se você é contra o aborto, deve concordar com sua legalização. Todos
devem concordar. Porque, afinal, todos são contra o aborto.
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