12
de dezembro de 2014 | N° 18011
MÁRIO
CORSO
Ladrões de
cavalos
Poucas
coisas divertiam mais meu pai do que falar talian, o dialeto vêneto que se
sobrepôs aos outros dialetos tornando-se uma língua comum aos nossos
italodescendentes. Sempre que podia, encontrava com os conhecidos para gastar a
nostalgia da sua língua materna. Como tantos, aprendeu português na escola. Meu
avô, no fim da vida, esqueceu o português e só falava talian, azar de quem não
entendesse. Uma das minhas bisavós jamais aprendeu o português, todos que lhe
interessavam falavam talian, para que falar outra coisa? Uma densa pátria
cultural e afetiva comum unia essa comunidade.
Nessas
tantas rodas de fala, sempre alegres, descontraídas, havia apenas um momento em
que a conversa tomava um rumo que desagradava a meu pai. Não lembro se ele
nomeava esse fato de alguma maneira, eu hoje chamo de “nobreza retroativa”. O
fato é que, vez que outra, lá pelas tantas, alguém puxava o assunto: o que tua
família fazia na Itália? E então eram lembradas tradições, profissões, terras e
uma pompa tal, que de forma alguma combinavam com os imigrantes que aqui
aportaram. Mal comparando, sabe aquele papo de reencarnação, em que todos foram
nobres ou distintos na outra vida e ninguém foi escravo nem camponês?
Ora,
a esmagadora maioria de quem veio para este, na época, fim de mundo, era pobre.
Não tinham terras nem posses, só esperança, às vezes um ofício e força para
trabalhar. Vieram lutar contra a miséria e foram vencedores. A meu pai soava
falso esconder a pobreza dos antepassados. A dureza da chegada na América fora
heroica e terrível, muito sofrimento e trabalho duro. Na opinião dele, dessa
epopeia deveríamos nos orgulhar, não da pátria perdida onde não tínhamos lugar,
onde a crise despejou os mais vulneráveis.
Quando
chegava a vez de meu pai falar da sua família na Europa, fazia um anticlímax
dizendo que se perdia nos séculos desde quando, de geração em geração, os Corso
seguiam no mesmo negócio, todos aprendiam com os pais os segredos do ofício e
de como essa tradição os unia e identificava a família na comunidade. Mas
“esquecia” de falar a profissão dos antepassados, ao que um da roda insistia:
mas afinal, o que faziam? A resposta era seca: “Roubávamos cavalos!”. A piada
desmontava o clima da nostalgia pela perda de uma Itália de fantasia.
Eu,
montando a cavalo, sinto falta do mouse, dos botões, do retrovisor, dos pedais.
Decididamente, não fomos feitos um para o outro, minha intimidade com eles é
pouca. Mas como nunca soube o que realmente fazíamos na Itália, meu pai era
lacônico a respeito, tenho receio de que possa não ser piada. Peço, então, que
não me convidem para conhecer seus cavalos. Tenho medo de ser assaltado por uma
força atávica e, mesmo que desajeitado, sumir com a tropa. Afinal, é tradição
de família!
*Mário
Corso substitui David Coimbra, que está em férias.
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