28
de dezembro de 2014 | N° 18026
ANTONIO
PRATA
A fuga do cativeiro
egípcio
“Pequeno
pânico” talvez soe incongruente, algo como “gigantinho” ou “leve furacão”, mas
foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagagens, acenando.
Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96,
dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó
delas.
Os
dois góis – ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a
escritor –, procurávamos terrenos comuns para escorar nosso deslocamento: eu
lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas do concreto
armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles
quipás. Dezoito anos e 11 horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...
Fui
empurrando o carrinho e arrastando meu pequeno pânico, pensando que seria tão
mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente.
Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de
lado ou de costas, conforme a situação.
Já
não namorávamos as primas, não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais
milenares, éramos apenas dois homens cansados, querendo ir logo pra casa.
Agora, porém, era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos
irremediavelmente atados até que chegassem as malas, condenados a uma escavação
arqueológica em busca de gefilte fishes, vergalhões enferrujados e contos nunca
terminados.
Eu
dei oi, apertamos as mãos. A conversa começou protocolar, “Poxa, quanto tempo”,
“Quinze anos? Mais?!?”, “Tá vindo de onde?”. Aos poucos, contudo, o papo
engrenou: mesmo cansado, às seis da manhã, ele investia alguma energia pra que
a coisa fluísse – energia que, momentos antes, eu preferia gastar metendo o
nariz no iPhone. Das viagens fomos pras primas (uma se casou com um austríaco,
a outra faz massagem ayurvédica), das primas pros jantares, dos jantares pras
profissões. Eu falei do meu último livro, perguntei o que ele fazia, me contou
que “desentortava prédios”.
Eu
ri, curioso, ele disse que era sério, esses prédios que afundam, como os de
Santos, são mais comuns do que se imagina. Então, enquanto à nossa volta olhos
sonados amaldiçoavam as malas alheias, deslizando como leões-marinhos pela
esteira, eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um
buraco embaixo do prédio, constroem uma espécie de piscina, enchem de água e
congelam com nitrogênio. ”A água, como você sabe, se expande ao congelar” – eu
não sabia – “o gelo empurra o prédio pra cima, aí é só escorar com uns
pilares.”
Quando
nos despedimos, o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma
sincera admiração. Ali estava um sujeito generoso, não um sujeito que via o
mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ora, se na década de 90 havíamos
concluído a fuga do Egito, mais de uma vez, tranquilos, o mínimo que deveríamos
fazer ao nos encontrarmos no aeroporto, no mercado ou no Azerbaijão era apertar
as mãos e investir algum esforço para sermos agradáveis. Me senti uma besta.
Paciência: uns nascem para desentortar edifícios, outros para embrulhar o
remorso numa folha de jornal.
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