RUTH
DE AQUINO
19/12/2014
20h41
Cuba Libre
Fui
a Cuba quase clandestina em 1984. Um cubano pediu dólar no câmbio negro – a
primeira desilusão
A
espetacular reaproximação entre Estados Unidos e Cuba me enfiou num túnel do
tempo. Há 30 anos, conheci Havana com um grupo de jornalistas e cineastas,
simpáticos à Revolução Cubana. O Brasil não tinha relações diplomáticas com a
ilha de Fidel Castro.
Era
uma viagem meio clandestina. Não poderíamos ter carimbo no passaporte, só num
papelzinho à parte. Na ida, dormiríamos em Bogotá, Colômbia. Na volta, na
Cidade do México.
Não
era meu primeiro contato com o socialismo. Em 1980, fui num trailer de Londres
a Budapeste e Praga. Na fronteira com a Hungria, a polícia me tomou um
cartão-postal de Davi, de Michelangelo, como “material pornográfico”. Em Praga,
fui obrigada a ir à delegacia diariamente para assinar onde tinha dormido.
Sombrios eram os dias.
Ao
chegar a Havana em 1984, não vi Cortina
de Ferro. Parecia uma ilha em festa. Povo gentil, orgulhoso, caloroso, cheio de
ginga. Negros belíssimos, esculturais, tudo era pretexto para dançar salsa e
beber rum. As cores do bairro de Havana Vieja, a arquitetura colonial e
neoclássica, os carros antigos, a orla do Malecón com namorados aos beijos,
pescadores e poetas. O Festival de Cinema lotava as grandes salas. Quem venceu
foi Nelson Pereira dos Santos, com Memórias do cárcere. Era esse o socialismo
moreno e tropical. Cuba ainda não se tornara órfã da União Soviética. Ainda não
desabara com a crise e a decadência, mas já sofria sérios problemas de
abastecimento.
Ficamos
hospedados no Hotel Nacional, o mais tradicional, construído em 1930 no estilo
art déco, com jardins, piscinas e vista para a baía. Os cubanos são como
hermanos, parecidos com os brasileiros, talvez mais que qualquer outro povo
latino-americano. O prato tradicional, moros y cristianos, é mistura de arroz
com feijão. O drinque é o mojito – coquetel à base de rum branco, limão,
hortelã, açúcar e água tônica. Para refrescar, o sorvete da Coppelia, num
prédio de vidros coloridos, da década de 1960. Para dançar, a Tropicana, com
show bem kitsch de mulheres seminuas. Para curtir a noite, bares como a
Bodeguita del Medio e a Floridita. Neles, o escritor Ernest Hemingway bebeu
daiquiri e mojito.
Os
homens, galantes, passavam cantadas, como “tengo ganas de bejarte”. Quem ouviu
essa foi Adriana Rattes. Ex-bailarina, uma das criadoras do cineclube Estação
Botafogo na década de 1980, Adriana estava no grupo – ela comandou a Secretaria
de Cultura do Rio nos últimos oito anos. Fomos todos à festa de gala no Palácio
de Fidel. O comandante cumprimentou cada um, olho no olho, com seu carisma e
sua farda. Nas mesas, cascatas de camarões e o rum, envelhecido nas moringas de
barro.
O
melhor da viagem foi caminhar sem destino em Havana Vieja. Chegamos a uma casa
com músicos anônimos da mais alta qualidade, que tocaram para nós, numa tarde
Buena Vista. Entramos em salas com retratos de Fidel, Che Guevara, Nélson Ned e
Roberto Carlos, lado a lado. Na televisão, a novela brasileira Escrava Isaura.
Fomos convidados, na rua, para uma feijoada por uma família cubana. No fim do
almoço, o dono da casa chamou meu companheiro no quarto e pediu dólar no câmbio
negro. Foi a primeira desilusão de meu então marido petista.
Percebemos
que éramos vigiados quase todo o tempo. A mesma pessoa estava na recepção do
hotel e na rua. Havia sempre um “guia” controlando movimentos e conversas. As
crianças nos perseguiam pedindo “plumas” (canetas). Os cubanos nos davam
dinheiro para comprar para eles os produtos das “tiendas”, as lojas dos hotéis.
Eles
não tinham (e não têm) acesso aos produtos das tiendas. Condenados a uma vida
pior, mesmo se tivessem poupado para consumir. Queriam a moeda cunhada
especialmente para uso de estrangeiros. Queriam viajar, mas não podiam. Queriam
liberdade, mas não tinham. Tinham médicos e escolas, mas o preço era alto. Hoje
querem acesso à internet.
Gays
precisavam disfarçar seus gestos, porque o regime os prendia e torturava. As
ditaduras são moralistas. A Revolução Cubana decretou o fim dos homossexuais e
das prostitutas. Como se tivesse esse poder. Havia prostitutas de todas as
idades. Todo regime totalitário – lá o slogan era “hasta la victoria siempre” –
acredita que pode mandar no que você pensa, no que você quer, no que você
deseja, no que você lê, no que você vê e em para onde você vai.
A
viagem deixou um gosto agridoce. “Pelas frestas dos sorrisos e das janelas, já
víamos as fissuras e as contradições de um socialismo tropical que criou
castas”, diz Adriana Rattes. Um regime que subjugou a liberdade de muitos ao
poder e ao privilégio de poucos. Torço pelo fim do injusto embargo dos Estados
Unidos a Cuba e pelo sucesso do gesto de Obama e de Raúl Castro, com a bênção
do papa Francisco. Que se abram as fronteiras, as celas e os corações.
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