sábado, 20 de dezembro de 2014


21 de dezembro de 2014 | N° 18020
MOISÉS MENDES

Adeus, Sarney

Construí fantasias, com cenários quase sempre majestosos, para alguns homens públicos que nos hipnotizaram com suas surpresas e fingimentos. Nunca por um Collor, desmascarado pela própria obviedade. Mas um Sarney, que visto de frente seria uma coisa, de lado virava outra, tinha nuances até de costas e assim se apresentava como um coronel em busca da transcendência.

Elaborei fantasias para Sarney, o aliado do golpe que ocupou o lugar de Tancredo em 1985. Quando assumiu, Sarney nos revelou avessos de quase tudo o que se poderia esperar dele. Na fantasia que construí, o Brasil seria um novo país a partir do Plano Cruzado, teríamos reforma agrária e os pobres tomariam iogurte.

Sarney foi a um congresso de trabalhadores rurais para dizer que iria retalhar os latifúndios. Acabaria com a inflação e criaria um mercado interno forte.

Não deu certo. Na quinta-feira, Sarney acordou cedo e foi para o Senado para o último discurso. O plenário estava vazio quando ele começou:

– Quero dizer que esta é a última vez que ocupo a tribuna parlamentar, que frequentei desde 1955.

De repente os colegas começaram a chegar.

– Quis fazer cedo para que não tivesse ninguém, para falar às cadeiras vazias, mas a Casa está enchendo.

E a casa se encheu para ouvir Sarney dizer que abomina a corrupção, que os partidos não valem nada, os políticos sucumbem aos interesses dos financiadores de campanha, que é preciso moralizar o governo e que a reeleição só prejudica o país.

Enquanto Sarney discursava, os jornais anunciavam pela internet que Maluf iria retornar à Câmara dos Deputados. Maluf foi liberado pelo Tribunal Superior Eleitoral para ser diplomado. Reverteu-se uma decisão do próprio TSE, que antes o considerou inelegível por condenação por corrupção. E Maluf disse sobre a decisão:

– Meus queridos, eu sempre confiei na Justiça deste país.

Sarney ia embora do Senado discursando contra os corruptos e Maluf anunciava o retorno exaltando sua confiança no Judiciário.

Sarney é o Brasil arcaico na sua obra humana exemplar. É um caboclo, quase uma figura de barro de mestre Vitalino, um político artesanal que arranja emprego para parentes, gerencia a corrupção paroquial e exerce o poder de agregar seguidores no Congresso para lotear governos.

Maluf frequenta outro departamento, o da disfunção da política no maior centro urbano do país. É a expressão da pilantragem liberal da linha de montagem industrializada. Nunca teria a confiança que o boneco barroco maranhense conquistou no Cruzado.

Sarney teve, em 1986, a adesão da elite e de intelectuais aos seus projetos redentores, que Maluf, um medíocre, nunca sonharia ter. Sarney brilhou até ser desmascarado como farsa na representação do que seria a versão do Getúlio do Maranhão, reformista, disposto a conspirar contra as próprias origens e a enfrentar o empresariado mais conservador, banqueiros, latifundiários.

Maluf nunca nos ofereceu a chance de pensar que ele também poderia se redimir, porque não dispõe de nenhum recurso que o absolva como aberração moral. Eu comeria rapadura com José Ribamar Ferreira Araújo da Costa Sarney na varanda da casa-grande em São Luís, mas nunca compartilharia nada com Maluf.


Os coronéis da política nos oferecem a força literária dos que fingem até na hora da despedida, como Sarney fingiu querer a solidão de um discurso para o plenário vazio

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