09
de dezembro de 2014 | N° 18008
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O SAPATO DA
FILHA
Só
agora, depois de dois anos da tragédia de Santa Maria, após a perícia e a
investigação policial, os familiares podem reaver os pertences de seus anjos da
noite infernal de 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss.
Não
resisti em chorar – eu que tenho uma filha de 20 anos –, quando vi na televisão
que um dos pais dos 242 mortos estava procurando o sapato que faltava de sua
adolescente.
–
Preciso achar!
Sua
filha foi puxada dos escombros e do incêndio com o pé direito descalço. Aquele
pai desesperado e angustiado com a perda irreparável está obcecado em vestir
pela última vez sua menina.
Aquele
pai sabe o que significa o sapato para uma mulher. Sabe o quanto a filha
escolheu o sapato para a balada. Sabe o quanto brigou pelo sapato, dizendo que
era caro mas iria durar. Sabe o quanto ela não tiraria o sapato por nenhum
motivo, para não sacrificar o charme e a elegância durante a festa.
Aquele
pai encarna o conto de Cinderela ao avesso. Pretende calçar a filha para reaver
a paz em si.
É o
mesmo sapato de crochê que botou em seu bebê assim que nasceu. É o mesmo sapato
que ensinou a amarrar quando ela tinha sete anos. É o mesmo sapato que ele
pisou, desajeitado, quando dançava a valsa de debutante de sua jovem. É o mesmo
sapato com que comemoraram a entrada na faculdade.
O
sapato é, neste momento, todos os sapatos da vida de sua filha. O sapato que
restou. O sapato sobrevivente. O sapato do qual ele nunca esquecerá o número. O
sapato último, definitivo, que não poderá ser substituído por mais nenhum
aniversário.
O
sapato que vai equilibrá-lo no pesadelo, na oração, na dor. O sapato para
colocar lembranças na lareira no Natal.
O
sapato viúvo dos amores que ela não teve, órfão dos pais que ficaram.
O
sapato que é uma forma enlouquecida do pai de continuar caminhando com sua
filha.
O
sapato sem estrada, sem futuro, andando de volta ao passado.
O
sapato envernizado, de couro, ainda novo, arrancado precocemente de sua dona.
O
sapato que daria para muitos verões, milhares de sóis, infinitas ladeiras.
O
sapato que não se gastou, mais longevo que o destino de uma adolescente.
O
sapato que é a possibilidade de segurar o chão de sua filha por mais um
instante, de oferecer chão para sua filha.
O
par não terminará incompleto, apesar da enorme injustiça no coração.
Entre
uma montanha de bonés, colares, alianças, celulares e identidades, o pai
tentará reconhecer o sapato de sua filha. E levar para casa algo salvo daquela
noite.
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