sábado, 20 de dezembro de 2014


21 de dezembro de 2014 | N° 18020
MARTHA MEDEIROS

Maria Adelaide

Já escrevi sobre o mendigo que encontrei em Lisboa, aquele que trata sua mendicância como um show de humor e aceita esmolas online, e hoje vou falar de Maria Adelaide, que conheci em Cascais.

Eram 15h e eu ainda não havia almoçado. Escolhi um restaurante simples, com mesinhas num calçadão. O lugar estava vazio, mas logo vi que se aproximava uma senhora de idade que gesticulava muito e abordava a todos. Cansada, sentou-se ao meu lado. Dois palmos separavam uma mesa da outra. Eu havia ganhado companhia.

Só que ela não comeu nada. Pediu apenas um uísque e a minha atenção: contou que havia sido uma famosa corretora, que ganhara muito dinheiro e perdera tudo, que fora amante de um homem casado por 20 anos, que já havia disputado corridas de carro, que havia aprendido a tourear, que estivera na inauguração de Brasília, que fora abençoada pelo Papa João Paulo II, que havia sido amiga íntima da fadista Amália Rodrigues, e eu ali, encantada com aquele personagem pronto, saído de um livro que não havia sido escrito – ainda.

Nem em tudo acreditei. O que me impressionou foi sua vitalidade: ela não parava de falar. Quando não era comigo, era com os pedestres que passavam. Para todos, tinha uma palavra. Para o turista que vinha de bicicleta: “Salta, não pode andar com isso no calçadão, ó pá”.

Para o casal de namorados: “Não confiem um no outro!”. Para o DJ que estava na janela de um bar: “Só ligue o som depois que me for!”. Ao garotão com o jeans rasgado: “Isso lá é roupa, menino?”. Mas sempre com um sorriso gigante no rosto, orgulhosa da própria inconveniência. Depois de cada abordagem, batia na própria coxa e dizia: Ssou humana, sou humana”. Seu bordão. “Sou humana.”

O pessoal logo entendia que era um personagem folclórico, mas, quando o assédio era infantil, o clima pesava. A cada criança que surgia, ela dizia aos pais: “Me empresta seu filho um bocadinho”. Os pais sorriam amarelo e afastavam os miúdos de seus braços, enquanto ela me confidenciava: “Enlouqueço com crianças”. Nunca havia sido mãe.

Pedimos a conta, paguei o uísque dela e mais uma vez me veio à cabeça a expressão “couvert artístico”, a mesma com que batizei aquela cena do mendigo na rua. Foi quando ela levantou, abriu sua bolsa e colocou em cima da minha mesa diversas folhas xerocadas onde apareciam fotos dela em Brasília, fotos dela com o Papa, com Amália Rodrigues, bilhetes pessoais, recortes de jornal. Um dossiê.

Só então perguntou o que eu fazia. Respondi que era escritora. Ela me deu um beijo no rosto como quem diz: boa piada! E se foi.

Dia seguinte, passei de bicicleta por ela em outra rua. Abordava os transeuntes, claro. Ao me ver, já começou: “Salta, salta!”. De repente, me reconheceu e apreensiva, perguntou: “Você não é escritora de verdade, é?”.


“Vai render apenas uma crônica, se você permitir”. Dada a permissão, continuei a pedalar até chegar aqui.

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