21
de dezembro de 2014 | N° 18020
L.
F. VERISSIMO
A aposta (2)
Depois
de 35 anos de casados, Maria ouvira José contar, numa roda de amigos, como os
dois tinham se conhecido. Numa mesa de bar, depois de muitos chopes, ele fizera
uma aposta: se casaria com a primeira mulher que entrasse no bar. Fosse quem
fosse. Qualquer mulher, salvo muito velhinha – e assim mesmo dependendo do seu
estado de conservação – ou travesti. E quem entrara no bar para tomar uma
Coca-Cola, linda no seu vestido de verão, fora a Maria.
José
puxara assunto com Maria. Oferecera-se para pagar sua Coca-Cola. Pedira seu
telefone. E menos de seis meses depois os dois estavam casados. E o casamento
dera certo. Tinham três filhos ótimos.
Conviviam
bem, sem grandes arroubos de paixão (fora uma louca escapada para Cancún, sem
as crianças e com lua cheia), mas bem. José trabalhava com papel por atacado,
Maria estudava Química, mas abandonara os estudos para se casar. Tinham uma
situação financeira estável, uma vidinha boa. E José nunca contara a Maria
sobre a aposta. Em 35 anos de vida conjugal, nunca contara.
–
Você não acha que eu tinha o direito de saber?
–
Ora, Marusca. Depois de tanto tempo, que diferença faz?
–
Como, que diferença faz? Nosso casamento se deve a uma aposta. Ao acaso.
–
Não. Ao destino. À sorte. Foi você que entrou por aquela porta do bar, para
minha sorte, e não outra mulher. Nosso destino era nos encontrarmos, de um
jeito ou de outro. A sorte empurrou você para dentro do bar.
–
Foi o acaso. Eu não conquistei você. Não foram meus encantos, meus cabelos, meu
perfume, sei lá. Meu único mérito foi entrar por aquela porta.
– Eu
me apaixonei por você em dois minutos!
–
Por acaso!
E
Maria pôs-se a divagar sobre como seria sua vida se não tivesse entrado no bar.
Quem garantia que ela não encontraria – no mesmo dia – outro homem, um
milionário que lhe daria conforto, luxo, emoções... Ou, ou... Maria se
entusiasmou com seu próprio devaneio:
–
Ou, ou... Se eu tivesse continuado no meu curso de Química. Quem garante que
minhas pesquisas não teriam ajudado a descobrir a cura do câncer? Entrar
naquele bar para tomar uma Coca-Cola pode ter custado a vida de milhões de
pessoas. Se eu não tivesse entrado no bar e casado com você, poderia muito bem,
hoje, ter um Prêmio Nobel. Ou, ou...
José
perdeu a paciência.
–
Está bem, Maria. Foi o acaso. Tudo é acaso. A vida humana é um acaso. Eu, você,
nossos filhos, todo o mundo é por acaso. Só um espermatozoide, entre os milhões
expelidos pelo meu pai, chegou ao óvulo da minha mãe. Só um, por acaso. E se
entre os que não chegaram, os que perderam a corrida, estivesse o que
descobriria uma cura, nem digo do câncer, mas do resfriado? E se em vez do
espermatozoide que gerou o Júlio César tivesse chegado ao óvulo da mãe dele
outro goleiro, que impediria os 7 a
1? Hein? Hein?
Mais
tarde, na cama, José beijou o pescoço da Maria e disse:
–
Marusca, lembra daquela semana em Cancún?
Maria
o empurrou e disse:
– Eu
não estou aqui, José. Eu não entrei naquele bar.
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