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sábado, 8 de novembro de 2008
08 de novembro de 2008
N° 15783 - O PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO
Veado
1. Na roda de chimarrão, alguém pergunta se a bomba de mate tem alguma relação com a bomba que manda tudo pelos ares. Pois não tem; bomba tem dois significados completamente diferentes, dependendo de sua origem, já que por trás desta forma, no Português, escondem-se dois vocábulos de som e grafia idênticos, mas com sentido e origem completamente diversos.
O primeiro, que designa um “artefato explosivo”, vem do latim bombus (“estouro, explosão”) e está presente em todas as língua modernas: bombe (fr.), bomba (it. e esp.), bomb (ing.); até o início do século 19, bombeiro era o soldado especialista em fazer e atirar bombas.
O segundo vem da raiz holandesa pompe, a mesma que aparece no inglês pump e no francês pompe, e significa “dispositivo para aspirar e expelir líquidos” – ou, como define o pitoresco Morais em seu dicionário (1813), “máquina que anda sobre rodas e tem grande canudos para se aguar algum lugar, de que se usa para apagar fogos”. Foi deste radical que derivou-se o atual bombeiro, tanto para designar o membro de um corpo organizado para o combate a incêndios, quanto o encanador, especializado em bombas e em encanamento.
2. Um amigo do peito me envia a cópia xerográfica de um artigo de etimologia que “prova” por A mais B que península vem de pênis. “Lê isso e vê se não é coisa de maluco!” – é o recado que vem na margem. Eu já tinha ouvido falar nessa etimologia de cacaracá, mas pensei que fosse piada! Desde quando todas as penínsulas têm a forma de um pênis? A da Flórida até pode ser, mas a da Itália, por exemplo, parece uma bota; a Ibérica, a pele de um urso...
Evidentemente, não é o radical de pênis que está aí, mas sim pen(e), um importante elemento latino, sempre anteposto, que significa “quase”. A península é quase uma ilha (insula, no Latim), da mesma forma que a penumbra é quase sombra (umbra) e o penúltimo é quase o último.
Se esse autor de meia-tigela, se esse etimologista de meia-pataca lesse mais o dicionário, acabaria encontrando penipotente (“que tem as penas ou as asas poderosas”) ou peniomania (“distúrbio psíquico em que a pessoa se julga reduzida à mais completa penúria”) – e lá viriam asneiras do mesmo quilate.
3. Finalmente, um leitor um tanto mal-humorado escreve para advertir que, ao contrário do que ando dizendo por aí (?), veado e viado são duas palavras diferentes, com origem e significado diverso.
Em tom professoral, este catedrático das nuvens começa por informar que veado é um mamífero da família dos cervídeos, que inclui também os cervos, os alces e as renas, enquanto viado é uma denominação pejorativa para o homossexual masculino, nascido do truncamento do adjetivo transviado. E conclui: “Como um viado não obedece os mesmos padrões comportamentais de um homem heterossexual, podemos realmente dizer que ele se transviou, fugiu de uma norma”.
Ora, ora, caro amigo, eu diria que estás equivocado. Eu vivi intensamente os anos 60 e o vocábulo transviado jamais – repito – jamais teve qualquer relação com o homossexualismo; a única relação que o termo teve com o sexo foi a idéia (em muitos casos, simples fantasia) de que os transviados viviam num eterno fórum sexual mundial, onde ninguém era de ninguém e o amor era livre e gratuito.
O “transviado” típico era baseado na figura de Marlon Brando do filme O Selvagem (The Wild One) e nos personagens do filme Os Trapaceiros (Les Tricheurs), de Marcel Carné: jaqueta de couro, motocicleta, óculos escuros, t-shirt, baseados de maconha, etc., aliados à rebeldia e à contestação dos costumes vigentes. No Brasil, o termo adquiriu uma carga quase criminosa, principalmente pelo famoso processo de Aida Cúri, a pobre moça que se atirou do alto de um edifício em São Paulo para evitar ser currada – outra palavra que passou a integrar o campo semântico dos “transviados”.
Para teres uma idéia, o filme de Nicholas Ray, Juventude Transviada, com James Dean, era rigorosamente proibido para menores de 18 anos por temerem, as autoridades, que o tal comportamento viesse a se disseminar entre os nossos jovens da classe média.
O teu maior equívoco foi interpretar um mero fato fonológico (a pronúncia /viado/ – a única, aliás, possível para veado, no Português Brasileiro) como um suposto truncamento do vocábulo transviado, que, como vimos acima, nunca se relacionou semanticamente com o homossexualismo.
Veado, com este sentido, aliás, vai se alinhar com certos animais femininos, a bicha, a paca e a marreca, usados depreciativamente para o mesmo fim.
Se insistires nesta tese – não por acaso, rejeitada por Aurélio e Houaiss –, vais ter de explicar por que, neste vocábulo específico, o truncamento eliminou o primeiro elemento (trans) e não o segundo, que é o mecanismo morfológico conhecido no Português: foto[grafia], moto[cicleta], micro[computador], cine[ma], bisa[vó], bici[cleta] e tantos outros. Vais ter um trabalho e tanto!
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