segunda-feira, 16 de junho de 2008



16 de junho de 2008
N° 15634 - Paulo Sant'ana


O doce Jamelão

Era doce e grande companheiro de noitadas o meu amigo Jamelão. Tinha um jeito retraído, gostava de ficar cismando numa roda, sem ser interrompido em suas divagações. Por isso e por andar sempre no meio do povo e ser assediado, ganhou fama de mal-humorado.

Mas quando se entregava a uma conversa, não parava mais de falar e contar os casos ligados à sua carreira e relacionados com os grandes músicos e intérpretes da música popular brasileira com quem conviveu.

Era bom de papo, bom de uísque, bom de Campari, bom de caipirinha, bom de mocotó, bom de feijoada, bom de bobó de camarão, prato em que sua mulher, Didi, era maestrina.

Foi o mestre dos mestres do samba de gafieira, do samba-enredo, do samba-canção de dor-de-cotovelo.

E se o samba é herança da cultura africana, Jamelão foi o mais exato reflexo da negritude musical brasileira.

Ele foi um cantor excepcional, cantor de orquestra, crooner, solista, líder de banda e de conjunto, ele conduzia as orquestras e os conjuntos que o acompanhavam, seguros de que não erraria uma nota, convictos de que estavam acompanhando um músico (Jamelão também era compositor sem brilho, mas escrevia as partituras das músicas que compunha e das músicas dos outros).

Quando cantava em qualquer espetáculo, expandia por todo o ambiente o timbre contagiante da sua voz. Como se ela fosse um instrumento.

O professor Darci Alves, mestre dos violonistas porto-alegrenses, era o músico que mais o acompanhava nas noites da boemia local.

Jamelão amava Porto Alegre e se hospedava aqui no apartamento do meu amigo Abraham Lerrer, onde permanecia por uma ou duas semanas. Toda noite era de festas, uma romaria pelos bares, tinha uma tal autoridade sobre os ouvintes, que era devotado por todos os lugares que freqüentava.

O professor Darci é exímio em conduzir os cantores que acompanha com seus acordes, ele guia os intérpretes pelos caminhos da linha melódica, é mais fácil cantar com seu violão.

Já com Jamelão, o professor não precisava se preocupar. Ele se embebia de alegria ao acompanhar o extraordinário intérprete, os dois compunham uma dupla de harmonia extasiante.

O que impressiona no repertório de Jamelão é a sua fidelidade canina à obra de Lupicínio Rodrigues. Deve ter-se tornado gremista por força da amizade com Lupicínio.

Costumava perguntar nas rodas que freqüentava se adivinhavam a música de que mais gostava. E os circunstantes gritavam: Castigo, Quem Há de Dizer, Maria Rosa, Eu e meu Coração, Cadeira Vazia, todas do Lupicínio, e só uma de seu êmulo, Lucio Cardin: Matriz e Filial.

"Pois se enganam", dizia Jamelão brincando, "a que mais eu gosto é esta aqui: Até a pé nós iremos/ para o que der vier..."

Morreu na madrugada de sábado, no Rio de Janeiro, depois de intensos sofrimentos, José Clementino Bispo dos Santos, o Jamelão (fruto negro e adocicado, o mesmo jambolão), com 95 anos de idade, ídolo da Mangueira, da qual foi intérprete dos sambas-enredo na Avenida durante 57 anos.

Ah, se me lembro dos almoços, das jantas, da voz metálica de Jamelão encantando os pescadores da 4ª Secção da Barra em Rio Grande, corriam o vinho, o peixe, o pirão e a voz maviosa do negro encantado.

Ah, se me lembro do dorminhoco Jamelão. Ele dormia sonâmbulo nas rodas de conversa. E quando se acordava, reencetava o papo com naturalidade.

Um dia surpreendemo-lo dormindo, sentado na mesa, com uma costela assada entre os dentes.

Gostava de cantar. E, quando encaixava a roda de companheiros, não parava mais de cantar, de graça. Viveu para cantar.

Ele encheu de arrebatamento musical o século passado. E vai deixar um imenso vazio na música autenticamente brasileira neste século.

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