segunda-feira, 23 de junho de 2008



23 de junho de 2008 | N° 15641
Luis Fernando Verissimo


Mágicas

Peguei meu filho no colo (naquele tempo ainda dava), apertei-o com força e disse que só o soltaria se ele dissesse a palavra mágica. E ele disse a palavra "mágica". Soltei-o em seguida.

Um adulto teria procurado outra palavra, uma encantação que o libertasse. Ele não teve dúvida. Me entendeu mal, mas acertou. Disse o que eu pedi. (Não, não, hoje ele não se dedica às ciências exatas. É cantor e compositor). Nenhuma palavra era mais mágica do que a palavra "mágica".

Quem tem o chamado dom da palavra cedo ou tarde se descobre um impostor. Ou se regenera, e passa a usar a palavra com economia e precisão, ou se refestela na impostura: Nabokov e seus borboleteios, Borges e seus labirintos. Impostura no bom sentido, claro - nada mais fascinante do que ver um bom mágico em ação.

Você está ali pelos truques, não pelo seu desmascaramento. Mas quem quer usar a palavra não para fascinar mas para transmitir um pensamento ou apenas contar uma história tem um desafio maior, o de fazer mágica sem truques.

Não transformar o lenço em pomba mas usar o lenço para dar o recado, um lenço-correio. Cuidando, o tempo todo, para que as palavras não se tornem mais importantes do que o recado e o artifício - a impostura - não apareça, ou não atrapalhe.

O Mario Quintana disse que estilo é uma dificuldade de expressão. Na época em que a gente não podia escrever tudo o que queria, estilo muitas vezes era disfarce. Apelava-se para metáforas, elipses, entrelinhas, e dê-lhe parábolas sobre déspotas militares - na China do século 15.

Uma impostura maior, a do poder ilegítimo, obrigava à impostura da meia palavra, do truque mais ou menos óbvio. O consolo era que o medo da palavra de certa forma a enaltecia: estava implícito que o regime só sobrevivia porque a palavra não podia exercer todo o seu sortilégio.

Hoje, livres da obrigação de dissimular, podendo ser econômicos e precisos sem artifício, nos descobrimos sem nem estilo nem muita relevância, mais impostores do que nunca. Pois pode-se escrever tudo e - já que, na manhã seguinte, o Brasil e o mundo continuam do mesmo jeito - não adianta nada. A palavra "mágica" é só a palavra "mágica".

O apagador

No filme La Chinoise, de Jean-Luc Godard, um personagem se vê diante de um quadro-negro em que estão escritos os nomes de todos os principais escritores, compositores, pensadores e artistas da História - e começa a apagá-los, nome por nome, até sobrar só um. Está fazendo uma espécie de purgação intelectual. Experimente fazer o mesmo.

Encha um quadro-negro com todos os nomes que lhe ocorrerem, em nenhum tipo de ordem. Uma seqüência pode ser, por exemplo, "Heródoto, Nietzsche, São Tomaz de Aquino e Charlie Parker", outra "Villa-Lobos, Steinberg, Marques de Sade, Platão e Frida Kahlo".

Quando não sobrar espaço no quadro negro nem para um nome curto ("Meu Deus, esqueci o Rilke!"), comece a apagar. Nome por nome. O importante é não racionalizar. Não estabelecer critério ou hierarquia. Deixar o apagador fazer seu trabalho sem interferência da sua consciência ou da sua emoção. Apenas ir apagando.

Você pode descobrir coisas surpreendentes a seu próprio respeito. Nomes que, até aquele momento, faziam parte da sua galeria de veneráveis se revelarão apagáveis, outros serão poupados até quase o fim.

E, no fim, o nome que sobrar, o único nome que você não apagar, poderá ser a maior revelação de todas.

Não será, necessariamente, o nome de quem você considera o mais importante, influente, valioso ou simpático da história das idéias ou das artes. Será apenas o nome que, por alguma razão, você não conseguiu apagar. Depois você só precisará se explicar para você mesmo.

No filme do Godard, o único nome que ficava no quadro-negro era o de Brecht.

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