quinta-feira, 19 de junho de 2008



19 de junho de 2008
N° 15637 - Luis Fernando Verissimo


Isenção

Um mito reincidente na história moderna é o da casta isenta.

De uma aristocracia capaz de conviver com as sujeiras do seu tempo sem se sujar, e cujos valores nobres continuam nobres porque são fiéis só a eles mesmos, sem outro compromisso ou concessão. Segundo o mito, você pode participar da História sem ser culpado da História.

Pode até liderar a História sem comprometer o seu álibi. Que é o de estar, por definição, acima dessas coisas. O caso mais notório de casta isenta no século que passou foi o da aristocracia militar alemã.

Depois da guerra, apareceram histórias da resistência da elite do exército profissional alemão, todos com "von" no sobrenome, àquele arrivista metido a estrategista, Hitler. Houve resistência, sim, mas a maioria dos "vons" seguiu Hitler com entusiasmo e quando tentaram matá-lo foi para negociar uma derrota que se tornara inevitável, não para impedir sua ascensão ou a continuação dos seus crimes.

Mas persiste uma idéia de que as velhas e boas virtudes prussianas sobreviveram sem mácula ou culpa à aventura nazista, que afinal foi uma coisa pequeno-burguesa.

Exemplo mais recente de pretensão à isenção aristocrática foi a de uma elite intelectual americana, Robert McNamara e etc., que tentou administrar a intervenção no Vietnã como se fosse um exercício de práticas de gerenciamento moderno, num vácuo moral em que também faltaram cálculos da disposição dos vietcongues e do crescente desânimo dos americanos para a guerra. As mortes sem sentido não eram com eles.

Eram os "melhores e mais brilhantes" de uma geração, os protótipos do que depois se chamaria - como elogio ou xingamento - de tecnocratas, e o fracasso pouco afetou seus currículos. McNamara ainda se declarou contrito, anos depois, mas que se saiba nenhum morto ressuscitou por causa disto.

A atual guerra no Iraque também não deixará entre os seus escombros e cadáveres as reputações dos que a idealizaram e perpetraram, todos protegidos pelos seus privilégios de casta.

Guardadas as óbvias desproporções: mesmo com toda a controvérsia sobre reparações pela repressão na época, novas investigações sobre fatos do passado como a Operação Condor e processos contra torturadores na Argentina e no Chile durante os anos de exceção, os militares do Cone Sul conseguiram preservar sua pretensão a casta isenta do julgamento da História.

O mito, afinal, teve mais força do que a justiça.

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