sábado, 28 de junho de 2008



29 de junho de 2008
N° 15647 - David Coimbra


A penicilina e o Gre-Nal

Em 1909, ainda faltavam 20 anos para Alexander Fleming descobrir a penicilina. Não existiam antibióticos, portanto. Morria-se por causa de qualquer gripe, as bactérias eram inimigos invencíveis como Bruce Lee.

As pessoas faziam os maiores sacrifícios para evitar a "friagem", como dizia a minha avó, incluindo-se aí o uso de galochas e ceroulas e a aplicação de escalda-pés.

Muito a Humanidade padeceu até o advento do antibiótico, mas pelo menos uma obra-prima da literatura mundial pode ser creditada ao atraso da medicina: Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. O livro é importante como marco do romantismo, e tudo mais, mas você não precisa ler. Digo mais: nem deve. Para o leitor contemporâneo, Os Sofrimentos... é chato.

Não que seja difícil, nem nada. Apenas chato. Até por isso, vou revelar o desfecho: Werther, o jovem esse, os sofrimentos dele são de origem amorosa. Um amor impossível e bibibi. O jovem se apaixona por uma bela moçoila chamada Charlotte, que, como todas as belas moçoilas, já está comprometida.

Tem um noivo lá. Werther dá em cima dela de todas as formas, mas ela nem aí. Depois de dezenas de páginas se lamuriando, ele sai durante uma tempestade sem capa nem guarda-chuva, resfria-se e, pfiu!, morre. De certa forma, um suicídio.

Por amor, suspiraram os românticos do século 18, um século tão sentimental que o romance de Goethe motivou uma onda de suicídios na Europa, o que prova o quanto eram tolinhos os europeus daquela época. Só que, na verdade, não foi de amor que Werther morreu. Foi de gripe.

Hoje em dia seria impossível suicidar-se de gripe. Bastaria uma injeção para salvar o desiludido Werther. Ele se recuperaria, ficaria forte e ativo como um bom alemão comedor de salsicha bock e, seis meses mais tarde, acabaria conhecendo alguém na balada, esqueceria Charlotte e pensaria: e eu quase me matei por causa daquela bisca...

Por essas, esportes ao ar livre não desfrutavam de grande prestígio até o século 20. Não existia isso de praticar esporte para ser saudável.

Ninguém saía correndo de calção e tênis por aí, a menos que estivesse fugindo da polícia ou tentando alcançar o bonde. O futebol, assim, surgiu não como um esporte, mas como um jogo. Aliás, é exatamente essa a minha opinião: futebol não é esporte, é um jogo.

Mas a minha opinião não interessa. O que interessa é que, em Porto Alegre, o futebol surgiu não como uma prática esportiva, e sim como uma brincadeira. Uma curiosidade a respeito: sabe-se o dia exato em que o futebol foi introduzido em Porto Alegre: 7 de setembro de 1903. Até essa data, ninguém jogava futebol na cidade.

O que havia era uma bola, uma única bola de couro que o paulista Cândido Dias ganhara de presente de seus primos de São Paulo. Esta bola, a primeira bola de futebol a quicar em solo porto-alegrense, Cândido Dias e seus amigos a usavam para brincar durante os piqueniques de domingo.

Piquenique era moda, então. Os jovens se reuniam nas inúmeras áreas bucólicas da cidade, comiam acepipes, bebiam vinho, cerveja e refrescos e faziam brincadeirinhas inocentes, entre elas um atirar a bola para o outro, coisa mais amorosa.

Depois do feriado da Independência, as brincadeiras tornaram-se sérias. Naquele dia, o S.C. Rio Grande, clube fundado três anos antes, veio a Porto Alegre para fazer uma apresentação.

Apresentação mesmo, um show, não uma partida. Jogaram Rio Grande versus Rio Grande. Todo mundo era do Rio Grande. Cândido Dias e seus amigos e mais centenas de outros porto-alegrenses foram ver o espetáculo. No meio do jogo, tragédia: a bola furou.

Não havia esse luxo de bola reserva. E agora? Que fazer? Bem, Cândido Dias estava com a sua bola paulista debaixo do braço. Disse que a emprestaria para que o jogo histórico fosse concluído. Com uma condição: que os rio-grandinos os ensinassem a jogar futebol.

Pacto feito, pacto cumprido. Oito dias depois, dois clubes de futebol foram fundados na cidade: o Grêmio e o Fuss-Ball. Ah, e aí está a palavra-chave: "clube". A prática de fundar clubes sociais foi trazida para o Estado pelos imigrantes alemães.

Ainda hoje, os grandes clubes que aí estão foram fundados por alemães ou seus descendentes entre o fim do século 19 e o começo do 20: o Juvenil, a Sogipa, o União, que se chamava (fale sem dar torcicolo na língua): "Ruder Verein Freudechaft"!

Clubes, entende? Constituídos para reunir as pessoas, não para a prática esportiva. Os fundadores geralmente já eram amigos. Natural, pois, que os sócios se permitissem aceitar ou não novos sócios. Aquilo de bola preta e bola branca.

O Grêmio, quando tinha seis anos, vetou alguns novos sócios. Porque eram paulistas e estavam havia pouco na cidade, e porque eram garotos de apenas 17, 18 anos de idade. Os garotos, inconformados com a bola preta recebida, decidiram fundar eles mesmos o seu clube. E o fizeram. E assim nasceu o Inter.

Toda essa história, iniciada lá com a penicilina, conto-a para falar das origens do futebol em Porto Alegre e no Brasil.

O futebol, por aqui, não apareceu por causa do futebol, nem por causa do esporte. Nasceu por causa do clube. Da associação. Por isso, o clube é o centro do futebol no Brasil.

Por isso, torcidas como a do Grêmio e a do Inter sentem mais apreço por seus clubes do que por jogadores ou pelo jogo.

Por isso, o Gre-Nal pouco tem a ver com o futebol. Tem a ver com a paixão, com a cidade, com as gerações de porto-alegrenses e gaúchos que o fizeram. Que o transformaram no maior jogo do mundo.

Nenhum comentário: