quarta-feira, 25 de junho de 2008



25 de junho de 2008
N° 15643 - David Coimbra


A casa vermelha e o homem azul

Na Aparício Borges, mais ou menos à altura do número 1.200, havia uma casa vermelha.

Toda vermelha.

Vermelhas eram as janelas e as portas, vermelhas eram as paredes e as telhas do telhado, vermelhas eram as cortinas que vedavam a luz, o soalho onde se pisava e o teto sobre as cabeças. A casa era vermelha por dentro e por fora.

Era a casa de um colorado.

No jardim da casa vermelha, o proprietário colorado mandou plantar um imponente mastro, e neste mastro, todos os dias, ele hasteava a rubra bandeira do Inter.

Quando saía, o colorado ia lá e arriava a bandeira, a bandeira servia como referência para quem o conhecia e pretendia visitá-lo. A pessoa chegava e olhava para o mastro.

Se houvesse bandeira, o colorado estava em casa; se não houvesse, ele tinha saído. Hoje em dia o mastro serviria como aviso para arrombadores e ladrões, mas estamos falando dos anos 60, década dos Beatles, do DKW, das Calças Topeka e das cidades seguras.

A casa vermelha era famosa na capital de todos os gaúchos. Só que um dia tornou-se verde.

O proprietário, ele mesmo, tomou um galão de tinta, vários galões de tinta, e foi lá e pintou as paredes, o telhado, os quartos, tudo, de verde. Por quê? Por causa do Foguinho.

É que Foguinho, o Oswaldo Rolla, havia sido contratado pelo Inter. Foi um abalo para as duas torcidas do Rio Grande. Os gremistas, chocados: Foguinho no Inter???

Não podia, Foguinho era como se fosse o próprio Grêmio. Entrou no clube nos anos 20. Vestia a camisa listrada número 10, e o fazia por amor: jamais aceitou receber um vintém, um cruzeiro, nada.

- Não jogo no Grêmio por dinheiro - dizia, o queixo de John Wayne erguido bem alto.

Mesmo assim, trabalhava como um profissional. Ao contrário dos outros jogadores da época, Foguinho treinava todos os dias. Como precisava exercer a profissão de alfaiate para se sustentar, treinava à noite, às vezes sozinho, às vezes com seu velho amigo Eurico Lara, o goleiro que Lupicínio Rodrigues incrustou na letra do Hino do Grêmio.

A fim de permitir que Foguinho treinasse, o Grêmio instalou no Fortim da Baixada uma novidade: um conjunto de refletores. Assim, a Baixada foi o primeiro estádio do Rio Grande do Sul com sistema de iluminação. Graças a Foguinho.

Foguinho jogou a vida inteira no Grêmio e foi herói de um dos mais importantes Gre-Nais da história, o Gre-Nal Farroupilha, em comemoração ao centenário da Revolução Farrapa, em 1935.

Era um homem de lealdades eternas. Uma manhã, enquanto o entrevistava em seu apartamento na Senhor dos Passos, ele puxou de um armário algumas caixas de papelão.

Estavam cheias até a boca de fotos e recortes de jornal. Uma das fotos era do ex-deputado e ex-presidente do Cruzeiro, Antônio Pinheiro Machado, pai dos meus amigos Ivan e José Antônio. Foguinho segurou a pequena foto com a mão direita e, sem tirar os olhos dela, sentenciou:

- Este foi o maior homem que já conheci.

Silenciei, em respeito. Foguinho havia conhecido muitos grandes homens, em sua longa vida.

Outro dia, ele pescou das mesmas caixas de papelão uma foto de Luiz Carvalho, ex-presidente do Grêmio e centroavante do time em que Foguinho brilhava na meia-esquerda.

- Luiz Carvalho foi um grande amigo meu - disse. E concluiu, num suspiro:

- Todos os dias eu penso no Luiz Carvalho.

Foguinho estava entranhado no Grêmio, fazia parte das vísceras do Grêmio. Nos anos 50, consagrou-se como o maior técnico da história do clube e, mais, como o fundador da escola gaúcha de jogar futebol. Com ele, o Grêmio só ganhava.

O ciclo de vitórias só foi interrompido quando Foguinho brigou com um dirigente e acabou saindo do clube para treinar, justamente, o time do seu grande amigo Pinheiro Machado, o Cruzeiro. Isso se deu em 1961.

Quando o Cruzeiro derrotou o Grêmio, permitindo ao Inter a retomada da hegemonia, Foguinho, sentado no banco do adversário do time do seu coração, chorou.

Foi esse homem que o Inter contratou em 1968. Donde, compreende-se a revolta do colorado da Aparício Borges. A curta passagem de Foguinho pelo Inter encerrou-se, claro, num Gre-Nal.

O Grêmio goleou por 4 a 0, com atuações de luxo de Alcindo e Volmir. No dia seguinte, os jornais publicaram uma foto desoladora de Foguinho: ele sentado só no banco de reservas, o olhar perdido dos vencidos, o chão coberto de laranjas que lhe tinham sido atiradas pelos colorados.

É óbvio que Tite não tem com o Grêmio a mesma identificação que tinha Foguinho. Mas sua contratação pelo Inter foi polêmica exatamente porque muitos colorados, inclusive alguns dirigentes, o consideram gremista. É este o grande obstáculo a ser superado por Tite no Inter: a desconfiança da torcida.

Ter um Gre-Nal já na sua terceira partida pelo clube é uma espada e lhe pende sobre a cabeça. Mas, ora, também pode ser sua redenção. Ou dos que o criticam. Aliás, o colorado da Aparício, depois que Foguinho saiu do Inter, voltou a pintar a casa de vermelho.

Nenhum comentário: