segunda-feira, 16 de junho de 2008



16 de junho de 2008
N° 15634 - Luiz Antonio de Assis Brasil


Palavras (34)

O ritual - Há 40 mil anos o homo sapiens viu a morte no rosto de seu filho. Amparou o pequeno corpo entre os braços. Soprou-lhe nas narinas, para devolver-lhe a vida. Aquela imobilidade do seu infante, ele nunca tinha visto.

O homo sapiens decidiu, pela primeira vez, e por toda a humanidade depois de si, que a vida não poderia terminar com seus mortos jogados às aves de rapina. Então chamou os outros, ensinou-lhes a chorar lágrimas que não decorriam de qualquer dor do corpo.

Assim, tristes, os outros ajudaram a cavar com as mãos, com pedaços de pau, com pedras afiladas, até que na areia havia uma cova do tamanho e do formato de uma criança morta. Deitaram-na cova, como se fosse uma semente. Sobre a criança depuseram, com vagar e compaixão, punhados de terra, até que nada mais enxergaram.

Era tudo muito estranho.

Sentados à volta, aguardaram o nascimento de uma nova criança. O passar dos dias, no entanto, lhes ensinou que ali tudo acabava. Mas souberam, e para sempre, que a nova vida estava em outro lugar. Chamaram a isso de alma. Séculos depois, Paulo iria escrever, preciso e poético: Morte, onde está tua vitória?

Um leque - Sei Shônagon era dama da corte da rainha Teishi. Era letrada. Era poeta. Como em todas as cortes, a corte da rainha Teishi vivia cercada de mesuras e rituais. A vida era delicada e inflexível.

No século 11 vivia-se a idade de ouro da literatura japonesa. Era um período de paz e de cultivo das artes. Era o auge da época Heian. A outrora cidade-capital hoje é chamada de Kyoto. Sei Shônagon possuía um caderno de notas.

Escrevia deitada, no quase-sono que antecede os refinados sonhos das mulheres. Dela temos as Anotações de Cabeceira [Makura no Soshi]. São 162 poemas que ela classificou pelo gênero das sensações que lhe provocaram. "Coisas que não servem para nada, mas que lembram o passado:

Um trançado de flores, velho e gasto, cujas pontas estão em farrapos. / Um pinheiro seco, no qual se enrosca uma glicínia. No jardim de uma bela casa, um incêndio queimou as árvores. / O tanque, entretanto, preservara seu aspecto primitivo; mas foi invadido por nenúfares e ervas aquáticas".

O único ritual em que Sei Shônagon acreditava era o da sua incessante, compulsiva e diária poesia. À frente da rainha, ela baixava os olhos e se curvava. Sob o leque, o fugidio sorriso.

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