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sábado, 21 de junho de 2008
22 de junho de 2008
N° 15640 - Luis Fernando Verissimo
De Juan Tizol a Barack Obama
A luta pelos "direitos civis" dos negros americanos chega a uma espécie de apoteose com a candidatura de Barack Obama, já que poder ser presidente é o direito civil máximo do cidadão de uma república. A prática democrática, afinal, tanto faz até que fura qualquer preconceito.
Diziam que um católico jamais seria presidente dos Estados Unidos. John Kennedy chegou lá. Agora uma possibilidade ainda mais improvável, um negro na Casa Branca, pode se tornar realidade. Mesmo que Obama não se eleja, o fato de chegar tão perto já é histórico.
Foi ali pela metade do século passado, estou perdoado se não me lembrar de detalhes. Acho que o nome da menina era Eileen. Minha colega no Theodore Roosevelt High School em Washington. Uma típica teenager americana, bonitinha, e branca como todos na escola, no ano em que entrei.
No ano seguinte, a Corte Suprema determinou o fim da segregação racial nas escolas americanas, e a Roosevelt High School recebeu seus primeiros alunos negros. Houve protestos e tumultos em outras escolas. Na nossa não, mas a segregação de fato continuou, os grupos não se misturavam.
Até que houve uma eleição para presidente da classe, ou coisa parecida, e a Eileen, cujo biótipo sugeria que seria a última pessoa do grupo a fazer tal coisa, levantou-se e indicou um dos negros recém-chegados como candidato. Ele foi eleito.
A integração de fato, pelo menos na nossa classe, começou ali. Ninguém se deu conta, mas também estávamos vivendo um pequeno momento histórico. A loira Eileen não era uma intelectual progressista. Quando não estava na escola, trabalhava no balcão de uma drugstore servindo sundaes e milk-shakes. Ela nunca ficou sabendo que era minha heroína.
Meu gosto pelo jazz me levou a viver mais de perto a questão racial americana. Quando ia ver os shows de rhythm and blues no Howard Theatre de Washington, era o único branco na platéia.
O rhythm and blues, precursor direto do rock, estava recém começando a ser cooptado pelos brancos, mas o jazz já contribuía há alguns anos para a aproximação das duas raças.
No famoso concerto da banda do clarinetista Benny Goodman e convidados, no Carnegie Hall de Nova York, em 1936, viu-se pela primeira vez num palco um branco e um negro - Goodman e o pianista Teddy Wilson - tocando juntos. Mas quase vinte anos depois disso os melindres persistiam.
Lembro de ver na TV um programa musical em que uma das atrações era Joe Williams, grande cantor da banda do Count Basie. No final do programa, era para todos os participantes dançarem juntos, e de repente o diretor se deu conta que isso significaria aparecer, nas telas de toda a América, o negro Joe Williams dançando com uma das artistas brancas.
O malabarismo que ele precisou fazer com suas câmeras para evitar que o horror fosse focado seria cômico se não fosse tão grotesco. De certa maneira, aquilo simbolizava todo o absurdo do racismo renitente numa sociedade aberta.
Nunca senti qualquer reação, fora algumas caras de surpresa, quando freqüentava o Howard Theater de Washington, mas músicos brancos viajando com bandas de negros pelo Sul dos Estados Unidos, onde o apartheid era oficial e rigoroso, sofriam um desconforto duplo.
Eram discriminados pelos brancos e pelos negros. O ruivo Red Rodney, trompetista que andou com o quinteto do Charlie Parker numa excursão por estados sulistas, era obrigado a jurar que tinha sangue negro para poder dormir no mesmo hotel e comer no mesmo restaurante com o resto do grupo.
E o absurdo chegou ao máximo, se o que contam é verdade, no caso da orquestra do Duke Ellington. Um trombonista da legendária banda, Juan Tizol, era negro mas não parecia.
Contam que, depois de ouvir muitas reclamações, tanto de brancos quanto de negros, sobre a presença de Tizol na banda, Ellington tomou uma decisão. Mandou que, quando tocasse no Sul, Tizol pintasse o rosto de preto. Durante muitos anos, os Estados Unidos estariam, assim, divididos entre os que Tizol precisava levar sua latinha de graxa e os que não precisava.
Barack Obama não precisou pintar o rosto ou adotar nenhum outro tipo de disfarce para ser candidato à presidência.
Um apartheid não oficial continua a existir na sociedade americana, apesar de ter gente dizendo que a candidatura do Obama é prova de uma América pós-racial, em que a questão custou, mas acabou sendo derrotada pelos seus próprios absurdos.
O fato é que, entre Juan Tizol a Barack Obama, houve uma revolução. Pode-se creditá-la, em parte, ao jazz.
E se sobrarem alguns agradecimentos, não nos esqueçamos da loira Eileeen.
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