quinta-feira, 26 de junho de 2008



26 de junho de 2008 | N° 15644 –
Leticia WierzchowskiVerdadeira

história de pescador

Estive no médico dia desses, e o doutor, mapeando meu passado, quis saber se eu ainda tinha os avós vivos e, se não os tinha mais, qual havia sido o motivo das suas mortes, e em que idade.

Fiquei ali uns minutos rememorando as desditas familiares (meus quatro avôs já são falecidos), e por alguns instantes me senti traçando as linhas gerais de um romance. Fui embora um pouco pesarosa de saudades.

Meu avô materno morreu aos 65 anos. Minha avó materna eu não conheci, morreu antes do casamento dos meus pais, e deixou certa aura de "santa", como todas as pessoas que morriam cedo nos antigamentes.

Minha avó paterna era uma senhora que viu de tudo neste mundo para morrer por engano aos 87, quando baixou hospital para fazer uns exames, e uma enfermeira desatenta ministrou-lhe o remédio da paciente da cama ao lado. Disso eu já era moça, e lembro bem do desconsolo - a avó Maria certamente chegaria aos cem.

Meu avô paterno era catarinense e tinha um nome que sempre me evocou fantasias. Bertuíno. Apesar do nome que faz lembrar aqueles homens do deserto, nada tinha de brutal ou selvagem; ao contrário, era calado, custando para cuspir uma palavra, mas olhava o mundo com uns olhos meio tristes.

Gostava mesmo era de pescar, e foi pescando, desde cedo, que teve a premonição de que ia morrer no próximo inverno. Bertuíno pescava de tarrafa, aquelas redes circulares que se lançam à mão; todo verão, ao final de março, ele chamava um dos netos e dizia "meu filho, pegue esta tarrafa pra ti, o avô está velho e não passa deste inverno".

No verão seguinte, estava o avô lá outra vez, e sem tarrafa - lá se ia meu pai a comprar-lhe outra para as pescarias.

Foi assim durante muitos anos: ao final do verão, o avô Bertuíno chamava um neto e passava adiante a rede, porque estava velho e, para ele, tempo de velho morrer era no inverno. Distribuiu fartamente as suas tarrafas, pois tinha dezenas de netos, dos seis filhos que fez na mulher (eram sete, mas um deles, em criança, afogou-se num açude).

Em certa pescaria noturna, no final de um verão, uma veia se lhe rebentou dentro do nariz, e ele prosseguiu pescando, pescando, enquanto seu sangue se esvaía no escuro e ia tingindo o mar.

O avô caiu na água sem sentir, depois de muito sangue perdido, e foi levado ao pequeno hospital praiano, onde, já em estado de choque, recebeu precário atendimento.

Não iria morrer ali, mas aquele foi o começo da sua morte. Para um velho pescador, tinha lá o seu encanto, derramar o sangue no mar... Ele morreu alguns anos depois, num começo de outono; depois de tantos verões, não teve decerto paciência de esperar a chegada do inverno.

Esta crônica foi publicada no Segundo Caderno em 27/5/2004

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