segunda-feira, 23 de junho de 2008



23 de junho de 2008
N° 15641 - Paulo Sant'ana


Regenera, sim!

Continuo com minha ingrata causa em favor da regeneração de presídios e de presos. Para desmentir a convicção de que criminosos que cumprem penas nos presídios não se regeneram mais, eis abaixo um documento alentador:

"Paulo, a leitura de tua crônica do dia 28 de maio, Holocausto permanente, encorajou-me a escrever-te. Afinal, escrever sobre violência social, documentar suas formas e fatos, já se tornou lugar-comum na imprensa em geral. Mas falar dela e de suas conseqüências para quem a sofre e executa, desacomodando consciências pela profunda reflexão que provoca, é bem menos comum. Tu conseguiste isso com tua coluna.

Ela é um brado de socorro, a voz para aqueles que, de longe, são os mais marginalizados, os mais esquecidos, aqueles que nós, sociedade, marcamos com ferro em brasa porque ousaram errar e aos quais não perdoamos e a quem também nós premiamos com uma das formas mais cruéis de violência - a indiferença.

Faço um trabalho voluntário numa organização apartidária, aconfessional e sem fins lucrativos, que apóia os que saem das prisões - Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário - Faesp.

Como vês, trabalhamos com aqueles que se libertam daquele inferno do cárcere no Brasil, que tão bem descreveste em tua coluna. Não preciso dizer das fragilidades, das vulnerabilidades pessoais, da destruição interior e exterior que os acompanha. Do abandono de suas famílias e amigos e - o que é pior - da desesperança que os marca.

Os que nos procuram são aqueles que, no universo dos ex-presidiários, desejam ansiosamente mudar de vida, reconstruir-se como seres humanos, recomeçar. Sabes qual a sua maior demanda, o seu maior sonho?

É, Paulo, seu sonho é conseguir um trabalho. Eles não querem assistencialismo, querem ajuda para se reequiparem para ingressar no mundo do trabalho e, através dele, reconstruírem-se como cidadãos.

Mas é exatamente aí que se revela a vulnerabilidade social. Não há trabalho para eles. Não há políticas públicas que os auxiliem. Não há leis que estimulem quem ajuda egressos do sistema penitenciário.

Nenhum legislador compreendeu, ainda, a importância de políticas desse tipo como inibidoras da violência. Então, Paulo, o que acontece? O velho ciclo: violência, prisão, liberdade, ausência de apoio e trabalho, reincidência criminal, mais e mais violência.

Aliás, nosso lema na Faesp é Reintegrar para não reincidir. Sabes quantas pessoas saíram da prisão em 2007, só em Porto Alegre? 7.958 pessoas (dados da Susepe-RS). Considerando que no Brasil não há pena de morte, nem prisão perpétua, todos os que entram no sistema penitenciário um dia voltam ao nosso convívio.

Não há políticas públicas nem programas para atendimento e apoio ao egresso, por isso a reincidência, por isso é preciso prender, por isso não há mais lugar nos presídios e concretiza-se o Holocausto. Vemos que a prisão, que deveria ser a última alternativa, torna-se a primeira.

Ao sair da prisão, os egressos já quites com a justiça dos homens encontram novo e cruel holocausto: a ausência total de apoio para mudarem de vida pela via do trabalho. Sim, Paulo, o Holocausto é permanente é para quem cometeu crimes.

Ele está nas prisões e, ironicamente, permanece na condição de liberdade. O prisioneiro e o egresso das prisões não são reconhecidos pela sociedade como sujeitos. E, no dizer de especialistas, quem não se reconhece como sujeito não reconhece o outro, exercitando a delinqüência.

Chega de violência! Eu gostaria de ver aumentar o coro dos que já desenvolveram uma ética da compreensão da violência e do ser humano que a pratica e que, por certo, bradaria: Chega de omissão, chega de indiferença, o qual substituiria o preconceito, o medo e a omissão por ações práticas desejáveis.

Em 10 anos de vida da Faesp, apenas uma empresa abriu postos de trabalho para nossos egressos: a Metalúrgica Jackwal. As demais portas foram surdas ao nosso apelo.

Apenas um programa de parceria Faesp e órgão público foi levado a efeito e, recentemente, foi encerrado. Há poucos voluntários, há falta de profissionais especializados em gestão, em psicologia, assistência social e saúde em geral. Nosso trabalho, por esta razão, é ainda empírico e insuficiente.

Mesmo com esse quadro, Paulo, nossos resultados são animadores. Do universo de 780 egressos por nós atendidos, no ano de 2007, 87,69% não reincidiram criminalmente. Esses são dados oficiais da Susepe.

Temos certeza de que a diminuição da violência passa, necessariamente, por políticas públicas que contemplem o egresso do sistema penitenciário e pelo despertar de consciências na sociedade em geral, já que ato cometido é necessidade não atendida e que ninguém nasce infrator. Torna-se infrator.

Compreender por que alguém comete ações que julgamos absurdas ou ignóbeis conduz-nos à ética da compreensão, no dizer do filósofo Edgar Morin. E essa ética nos conduz a uma ação solidária em prol da paz social.

A construção da não-violência é um ato coletivo, do qual ninguém que ame a paz poderá eximir-se.

Obrigada, Paulo. (ass.) Dirce Habkost de Carvalho Leite, pedagoga voluntária na Faesp, faesp2004@bol.com.br".

Nenhum comentário: