sábado, 7 de junho de 2008



07 de junho de 2008
N° 15625 - Cláudia Laitano


Branco escangalhado

Era um senhor simples, mas bem composto, desses que ainda usam chapéu e usam o verbo "escangalhar". Percorremos involuntariamente juntos os caminhos da Fundação Iberê Camargo na ensolarada tarde do último sábado.

Ora eu me apressava, e ele ficava para trás, olhando mais demoradamente um quadro, ora nos encontrávamos junto a uma outra pintura ou perto da janela - criando aquela camaradagem silenciosa de pessoas que percebem que estão se percebendo. Imaginei coisas simpáticas ao seu respeito.

Que gostava de arte, mas talvez não tivesse tido muita chance de viajar e ver grandes museus - e, neste caso, aquele prédio monumental era para ele um legítimo caso de montanha vindo a Maomé.

Talvez os filhos e a mulher não tivessem os mesmos gostos, por isso foi sozinho ao museu, no primeiro dia em que ele abriu para o público da cidade. Maomé retribuindo a gentileza da montanha com sua presença e interesse, nada mais justo e inteligente.

Em uma das paradas junto à janela, a realidade interrompeu o idílio. Não na forma poética da paisagem exterior, mas com um comentário surpreendentemente pragmático do senhor bem composto:

- Os pichadores devem estar loucos com esse branco todo para escangalhar...

Opa, eu pensei, cadê o velhinho simpático que estava aqui? Devíamos estar falando de Maomé e da montanha, dos museus do mundo, da grande arte ao alcance de um passeio de ônibus e não da visão terrível do prédio de Álvaro Siza atacado por um bando de adolescentes com muitos hormônios e pouco tutano.

Sorri amarelo e continuei o passeio, mas não consegui mais tirar aquela imagem da cabeça: a parede branca ameaçada - o branco como símbolo de um museu ideal em uma cidade ideal, e a pichação como um carimbo da nossa incapacidade para tomarmos conta de coisas bonitas.

Não é difícil entender por que a idéia de vandalismo invadiu esse que era para ser um momento de contemplação e orgulho. As notícias de monumentos e obras de arte destruídos tornaram-se espantosamente comuns nos últimos meses em Porto Alegre e no interior do Estado.

Na semana que passou, o jornal fez uma reportagem sobre uma escultura do artista plástico carioca Waltércio Caldas que foi "desconstruída" pela cidade - mas não no sentido teórico, infelizmente. "Desconstrução", em Porto Alegre, é outra coisa.

O que mais assusta na reportagem não é o destino infeliz da obra doada por um artista de renome internacional, mas o comentário do professor José Francisco Alves, que faz doutorado sobre a arte em espaços públicos do Rio Grande do Sul:

"Conheço um pouco do Brasil e do mundo e posso dizer que o que ocorre em Porto Alegre não acontece em nenhum outro lugar. Em São Paulo, no Rio, em Curitiba ou em Montevidéu, as pessoas não sobem e destroem tudo como aqui".

Na semana em que uma crise moral travestida de crise política tomou conta do Estado, a preocupação com obras de arte depredadas parece amendoim. Mas não é.

O vandalismo e a corrupção têm, em última instância, uma origem comum: o desrespeito ao bem público (o que é de todos não é de ninguém) e a impunidade crônica. Nossa parede idealmente branca, o já folclórico "orgulho gaúcho", nunca precisou tanto de uma faxina geral.

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