sexta-feira, 6 de junho de 2008



06 de junho de 2008
N° 15624 - David Coimbra


Perigos da infância

Existe uma técnica para a reunião dançante. Lógico, tem que ser na lenta. Contato físico, manja? O calor dos corpos. Eu fazia o seguinte: esperava o velho Macca começar:

And when I go away

I know my heart can stay with my love...

Aí eu ia. Ia pisando firme e olhando nos olhos dela. Ela já sabia. Eu quase podia ouvir seu coraçãozinho palpitando sob o sutiã. Então eu sorria de um jeito de lado que tenho de sorrir. E puxava-a delicadamente, como se estivesse arrancando uma pétala do botão.

Neste ponto é que entra a técnica. Que consiste em exercer com as pontas dos dedos uma pressão suave nas costas dela. Suave e contínua, massageando-lhe os flancos, escalando a cervical até as omoplatas e roçando, de leve, sua face esquerda na face direita dela.

Algo acontecerá, creia, e, se tudo der certo, a pequena mão dela voará como uma borboleta branca até a sua nuca e os delgados dedinhos dela vão lhe fazer carícias breves debaixo do cabelo, e aí você já sabe: gol do Brasil. Mão na nuca é gol do Brasil, cara!

Por isso que a gente estava sempre organizando reunião dançante no salão de festas da Coorigha, na fronteira oeste do IAPI. O brabo era arranjar toca-discos. Ninguém tinha. Minha irmã Silvia uma vez ganhou uma eletrola portátil, laranja, de plástico, mas quem diz que ela emprestava? Maior trabalho convencê-la.

Um dia, depois de muito chalalá, conseguimos arrancar as duas de casa, ela e a eletrola. Fomos para o salão, as gurias levaram negrinho e branquinho, os guris umas Peponas de um litro. Agulha no disco, tudo tri, eu pronto para empregar minha técnica, quando aqueles caras chegaram.

Uns sujeitos maiores do que nós, mais velhos, que viviam vadiando pela zona, fazendo laúza. Chegaram gingando, mascando chiclé, fumando. Chegaram provocando as minas e olhando torto para nós, comendo branquinho, tomando Pepsi, e nós paramos. Ficamos encostados na parede, ombro com ombro, indecisos, sem saber como reagir.

Os caras eram mais fortes e mais numerosos, iam nos dar um pau se fôssemos para cima deles, iam transformar nossas belas caras em xis-bacon. Mas tínhamos de fazer algo, nossas gurias estavam lá, acuadas, nervosas, e os carinhas estavam acabando com nossa reunião dançante.

E agora? Nós vacilando e eles já em volta das minas, já assediando, já debochando, até que um deles tocou na eletrolinha laranja. Minha irmã saltou detrás de uma coluna:

- Tira a mão daí, seu bagaceira!

E, pequeninha, loirinha, magrinha, foi para cima do grandalhão, dedo em riste, xingando sempre, imprecando e mandando:

- Fora daqui! Todos vocês! Vocês não foram convidados!

E foi empurrando-os todos e tangendo-os como se tange o gado, e enxotou os caras, que se retiraram entre risonhos e surpresos, e foram embora, e nos deixaram em paz. Quando já estavam lá adiante, fora do alcance auditivo, gritei:

- E não ousem voltar, vermes!

Hoje, tantos anos depois, lendo sobre quadrilhas que se infiltram no Orkut para seduzir crianças, temo pelo futuro do meu filhinho Bernardo e penso como eram saudáveis os perigos da infância naquelas priscas eras de reuniões dançantes e eletrolas portáteis e irmãs enfezadas e discos do velho e bom Macca.

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