segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008



11 de fevereiro de 2008
N° 15507 - Luis Fernando Verissimo


Uma sombra do Goya


O roteiro do filme Sombras de Goya é do diretor Milos Forman e de Jean-Claude Carrière, que deveria espalhar que foi Forman quem escreveu quase tudo.

O filme não chega a comprometer Forman como diretor mas o roteiro compromete os dois como autores, e Carrière (roteirista do Buñuel e do Peter Brooks, entre outros) tem uma bela reputação a proteger. Imagine uma história envolvendo Goya em que Goya é supérfluo.

Uma das personalidades mais intrigantes e instigantes da história, cuja vida e obra dariam vários filmes, neste é usada como figura secundária, sem nenhuma importância na trama, que por sua vez é um novelão literalmente inacreditável.

Goya já tinha sido maltratado no cinema. Lembro até uma versão de Hollywood chamada A Maja Nua em que Ava Gardner era a duquesa de Alba, suposta paixão do pintor e suposta modelo para a celebre pelada, e Anthony Franciosa era um Goya atlético e espadachim.

Carlos Saura também não fez o filme que poderia ter feito sobre Goya, que assim permanece como um exemplo supremo de desperdício, um personagem pronto para o cinema que o cinema nunca aproveitou.

E que no filme de Forman é reduzido a coadjuvante do Javier Barden, o espanhol do momento, com sua cara monumental.

Goya, além de não ter função no enredo, atrapalha o filme. Como não podiam ignorar sua surdez - não sei por que, pois ignoraram todo o resto da sua biografia - inventaram um ridículo assistente cujo trabalho é traduzir para o pintor o que está sendo dito em linguagem de sinais, que Goya presumivelmente aprendeu num curso intensivo.

O que só serve para atrasar a ação e aumentar nossa perplexidade com o presença do Carrière nos créditos.

A certa altura desaparece o assistente meio zonzo, que provavelmente pediu à produção para ser poupado do vexame geral, e Goya passa a entender tudo o que dizem. Não temos nem a Ava Gardner para compensar o resto e a Natalie Portman só aparece nua de longe e pendurada do teto.

Fica-se imaginando o filme que poderia ser feito - até pelo próprio Forman, no estilo do seu Amadeus - com um bom roteiro sobre este que foi um dos quatro ou cinco principais transformadores da história da arte, e sua progressão de pintor das frivolidades e vaidades da corte espanhola ao torturado autor das terríveis pinturas negras que fez no fim da vida para não serem vistas por ninguém, passando pelas gravuras sobre a insensatez humana até hoje inigualáveis na sua acidez.

Um filme em que a história daqueles tempos fosse entrevista através da fascinante história pessoal de Goya, em vez de um filme em que, pelos furos de uma história falsificada, se avista, vez que outra, a sombra de um Goya irrelevante.

Só nos resta, por misericórdia, fingir que este filme não foi feito e expurgá-lo do currículo do Carrière.

Uma sugestão: se for ver o filme, resista à tentação de sair no meio, apesar de tudo. Tenha paciência. As principais pinturas do Goya - com a conspícua ausência das majas, a vestida e a desnuda - aparecem no fundo dos créditos finais. São as únicas razões para ver o filme.

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