sábado, 9 de fevereiro de 2008



08/02/2008 - 20:14 | Edição nº 508

Um atirador dentro da lei

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra

POLÊMICA
O promotor Thales, entre seus advogados. O caso é delicado e divide o meio jurídico

Há duas maneiras de matar alguém e não ir para a cadeia: quando fica comprovada a legítima defesa ou quando a Justiça falha. Se o réu confesso é promotor, conta com algumas benesses, como fórum especial, porte de arma e salário integral. Pelo menos enquanto não for condenado. É o caso de Thales Ferri Schoedl, de 29 anos.

O jovem promotor admite ter matado a tiros o jogador de basquete Diego Modanez, de 20 anos, no balneário Riviera de São Lourenço, em 2004.

Mas sempre alegou ter disparado 11 tiros em legítima defesa. Como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE), a função de Thales é fiscalizar o cumprimento das leis. Seu cargo permite que ele ande armado, mesmo em momentos de lazer.

Os tiros disparados por Thales teriam se diluído no cenário da violência entre jovens caso ele tivesse outra profissão. Por ser promotor, Thales colocou em jogo a imagem pública da Justiça brasileira. Se Thales for inocentado, seria por “corporativismo”? Se for condenado, seria em decorrência do clamor popular contra o corporativismo na Justiça?

O destino de Thales tornou-se mais róseo na tarde de quarta-feira 29 de agosto de 2007, em São Paulo. O jogo virou a seu favor. Foi quando o MPE decidiu que ele seria efetivado no cargo, mesmo após o crime. Quando matou Diego, Thales cumpria o “estágio probatório” – período de dois anos em que promotores iniciantes são avaliados.

Ao fim do estágio, em decisão apertada, com 16 votos a favor e 15 contra, o Ministério Público decidiu estabilizar o promotor em seus quadros. Foram invalidados dois pareceres negativos, do Conselho Superior do Ministério Público, que pediam sua exoneração.

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra
A partir da decisão de agosto do ano passado, Thales passaria a dormir mais tranqüilamente. Ele já não teria de enfrentar o júri popular de Bertioga, município do litoral paulista onde fica o balneário Riviera de São Lourenço.

Ele voltaria a trabalhar, a receber um salário de R$ 10.500 (corrigidos em janeiro para R$ 18.009,75) e a portar uma arma. Quando um promotor comete um crime, ele é julgado num foro especial do Tribunal de Justiça, formado pelos 25 desembargadores mais experientes do Estado. Quando matou, Thales ainda não tinha a certeza desse benefício. Passou automaticamente a ter.

Na tarde em que Thales foi efetivado, faixas com as frases “Justiça para o crime da Riviera” e “Pela expulsão do promotor” eram exibidas em frente ao prédio do Ministério Público de São Paulo.

“Pena que eu não vim com nariz de palhaço”, disse Sônia, mãe de Diego Modanez ao saber da vitória de Thales. “Estão colocando a arma de volta na mão dele para tirar a vida de outros filhos. É um absurdo”, disse Fábio Pira, pai do rapaz assassinado.

A decisão, polêmica, deu início a um novo debate no meio jurídico. “Muitos promotores em estágio probatório já perderam o cargo por problemas menores”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.

Ele cita o caso de uma mulher que deixou de ser efetivada apenas por ter-se divorciado durante esse período. Outro suposto desvio de conduta que impediu a efetivação na promotoria foi um atentado leve ao pudor: o candidato foi flagrado nadando nu. “Thales foi armado à praia, e isso já é motivo suficiente. Acho que foi uma decisão equivocada”, afirma Serrano.

REVOLTA
Os pais de Diego, Sônia e Fábio, hoje vivem em São Carlos, São Paulo, e não aceitam que Thales esteja impune

O procurador-geral do Ministério Público de São Paulo, Rodrigo Pinho, já havia declarado que Thales não tinha condições de seguir na carreira.

Pinho teve de se retratar perante os colegas por ter sugerido que houve corporativismo na decisão de manter Thales no MPE. Procurado pela reportagem de ÉPOCA, o procurador-geral disse que não fala sobre o caso.

Depois de efetivar Thales, o MPE decidiu que ele assumiria a posição de segundo promotor na comarca de Jales, uma cidade de 40 mil habitantes a 585 quilômetros da capital paulista. Só precisava comparecer ao fórum da pequena cidade e começar a trabalhar. Mas isso nunca aconteceu. Até hoje ele não assumiu o posto que lhe fora designado.

A notícia de que Thales Ferri Schoedl substituiria o promotor Herivelto de Almeida espalhou-se por Jales com prodigiosa velocidade. Quando alguém se lembrou de que o pai de Diego Modanez, Fábio Pira, havia jogado basquete pelo time da cidade, entre 1994 e 1995, um sentimento de indignação tomou conta das ruas.

As três rádios davam a notícia sem parar. Elas convocavam os habitantes a firmar um abaixo-assinado repudiando a nomeação do promotor. Moema Passos da Silva, uma aposentada de 72 anos, foi uma das primeiras a articular a reação.

Em pouco tempo, centenas de moradores se dirigiram à Praça dos Jacarés, ponto de encontro da cidade, para assinar o documento. O texto de quatro parágrafos termina assim: “A presença de Thales causará um sentimento de desconforto e intranqüilidade aos cidadãos e famílias de bem”.

Além de Moema, que apareceu em rede nacional de TV como guardiã do abaixo-assinado, o ex-vereador Carlos Cardoso ajudou a espalhar o texto. Cardosão, como é conhecido, tornou-se próximo da família de Diego porque seu filho morou com os Modanez durante seis meses enquanto jogava basquete com Diego. “Não vamos aceitar calados.”

Embora imbuídos de uma atitude legítima, Cardosão e Moema encontraram resistência. Um dos juristas da cidade teria dito ao ex-vereador: “Deixa quieto. O cara vem para trabalhar”. Ressabiado, Cardosão ligou para o filho, que é advogado. “Protestar é um direito da população”, disse o rapaz. Anos antes, ele havia jogado basquete com Diego.

No dia 31 de agosto de 2007, o governador José Serra esteve em Jales para inaugurar uma faculdade de Tecnologia. Era o auge da polêmica, e o governador emitiu sua opinião em público: “Fiquei profundamente triste com essa decisão (da Justiça, de enviar o promotor a Jales). Quero dizer que sou solidário com a indignação da população de Jales a respeito desse assunto”.

A população de Jales, São Paulo, se mobilizou e impediu a ida do promotor para a cidade onde a vítima viveu com os pais
Aos 26 anos, tudo parecia dar certo para Thales Ferri Schoedl. Em um concurso difícil, desbancara mais de 8 mil candidatos para conseguir a vaga de promotor de justiça. Tinha uma namorada bonita e ganhava bem. Seus superiores avaliavam seu trabalho como bom ou ótimo.

Mas ele temia represálias porque aceitara processos polêmicos que envolviam grupos de extermínio e policiais militares. Por isso, fez cursos de manuseio de armas e passou a carregar uma pistola calibre 38. No dia em que sua vida mudou para sempre, Thales não foi trabalhar.

Dirigiu por várias horas, de Iguape, no litoral sul de São Paulo, onde cumpria o estágio probatório, até a Riviera de São Lourenço, onde sua família tem uma casa de veraneio. Iria se encontrar com Mariana Uzores Batoleti, de 19 anos, sua namorada.

Testemunhas da acusação afirmam que Thales havia tentado falar com ela a noite toda, sem sucesso. O celular da moça estaria desligado. Ele chegou à Riviera por volta das 3 horas da madrugada. Passou em casa, onde havia um churrasco. Mariana também não estava lá.

A relação entre Thales e sua namorada é um dos pilares da acusação. Segundo o advogado Pedro Lazarini, Mariana provocava Thales em público. Um dos depoimentos mais explosivos é o do dono de uma boate que Thales freqüentava na Riviera, chamada Los Gringos. Jacques Bonhomme, que conhece o promotor desde que ele era adolescente, afirmou em juízo que Mariana “é uma menina que põe fogo em Thales”.

Jacques disse ainda que o promotor se envolvera em dois “bate-bocas” na casa noturna e quase brigara com outros rapazes porque Mariana reclamou do assédio deles.

Segundo Jacques, ela se apresentava como “a namorada do promotor”. Meses depois da noite do crime, o casal terminou o namoro. No depoimento de um policial militar que patrulhava a portaria da Los Gringos, Thales é retratado como “boca dura”, briguento e alguém que vivia se envolvendo em confusões. Segundo o PM, Thales manuseava a pistola automática em público e fazia valer sua posição.

Naquela noite, Mariana havia ido até a boate Los Gringos. Sem Thales. O promotor só a encontraria mais tarde, perto de um local onde acontecia um luau com mais de mil pessoas. Juntos, os dois atravessaram uma praça rotatória em direção ao carro de Thales. Havia ali duas viaturas da Polícia Militar e duas da vigilância particular do condomínio.

Centenas de jovens ouviam som ao redor de carros estacionados. Eram 4 horas. Alguém se dirigiu a Mariana. “Gostosa”, teria dito. Thales diz ter exigido respeito. Testemunhas afirmam que o casal começou a brigar. Foi quando Diego Modanez e Felipe de Souza se aproximaram.

A partir desse momento, as versões diferem. De acordo com a defesa, os dois jogadores de basquete, com mais de 2 metros de altura, estavam entre os que haviam faltado com o respeito. Teriam desafiado Thales. A acusação afirma que Diego e Felipe somente pediram calma ao casal. Thales teria sacado sua arma e se identificado como promotor de justiça. Diego e Felipe se afastaram.

“Guarda essa m...”, teria gritado Mariana. Um grupo de dez rapazes então começou a gritar: “Você é ‘promoter’ de balada! Sua arma é de brinquedo!”. A defesa diz que Diego e Felipe se destacavam à frente da turma. Segundo a acusação, Diego e Felipe, de costas, se afastaram da confusão. Foi então que Thales teria dado tiros de advertência, para o chão e para o alto. A perícia balística não encontrou nenhum projétil no solo.

REAÇÃO
A aposentada Moema, em Jales, com uma das faixas usadas nos protestos

Depois dos primeiros tiros, Thales foi acuado e perseguido. Uma testemunha afirma ter ouvido gritos de “Mata, mata!”. Para a acusação, Diego e Felipe tentaram segurar o braço de Thales para evitar que ele atirasse. Os advogados de Thales dizem que ele só atirou, em legítima defesa, quando foi encurralado e depois que Felipe agarrou seu braço.

Um laudo da perícia mostra ferimentos no braço direito de Thales, Rodrigo Bretas Marzagão. A acusação afirma que ele atirou de cima para baixo, quando as vítimas já estavam caídas.

“Na verdade, foi o Felipe quem provocou tudo”, diz o advogado de Thales. “Tomou um tiro na perna, não parou; outro no braço, continou avançando.” No desfecho, Diego e Felipe se contorciam, caídos no chão. Felipe fora alvejado quatro vezes: nos braços, na perna e no peito. Diego, atingido por duas balas, no braço e do lado direito do peito, morreu por ter perdido muito sangue. No total, Thales disparou 11 tiros.

A acusação afirma ter o testemunho de um dos guardas do condomínio, segundo o qual Thales teria apontado sua arma, ainda com uma bala, para o rosto do vigia antes de fugir de carro. Mariana entrou numa ambulância dizendo-se parente de Diego.

Thales foi preso na casa dos pais, já de manhã. “Era um garoto apavorado”, disse Alberto Corazza, diretor do Departamento de Polícia Judicial da região de Santos.

Às 5 horas daquela manhã, o telefone tocou na casa de Sônia e Fábio Pira, em São Carlos, no interior paulista. Ficaram sabendo que o filho Diego estava no hospital.

Hoje, o casal diz que só consegue dormir à base de tranqüilizantes. Sobre a mesa da sala, uma pilha manuseada de jornais e revistas sobre o caso. Quando foi a Jales participar de uma moção de repúdio à nomeação de Thales votada pela Câmara Municipal da cidade, Sônia ficou surpresa. “Todo mundo queria me tocar”, disse ela sobre a solidariedade que recebeu.

Quem conviveu com Diego diz que ele era incapaz de brigar. “Podem procurar alguma história ruim”, diz dona Sônia. “Se tivesse, alguém já teria encontrado e transformado em prova contra meu filho.” Sobre Thales, ela diz simplesmente: “É um monstro. Gostaria de olhar dentro dos olhos dele.

Quero que ele me peça perdão pessoalmente”. Fábio, o pai, sente que lhe falta um pedaço. “Antes, eu colocava a mão aqui e sentia meu peito. Agora, a mão atravessa.” Bruno, irmão de Diego, que deveria se apresentar à seleção brasileira juvenil de basquete logo depois da morte do irmão, perdeu dois anos da vida para a depressão. Hoje, está nos Estados Unidos. Jogando basquete.

No dia 3 de setembro de 2007, o procurador Nicolao Dino pediu a suspensão temporária da decisão de efetivar o promotor na carreira.

Foi a primeira vez, desde sua criação, em 2004, que o Conselho Nacional do Ministério Público interferiu numa decisão estadual de concessão de cargo vitalício a um promotor. Seu caso ilustra o choque entre duas instituições: o Conselho Nacional do Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar do status de promotor de Thales estar suspenso pelo Conselho, o processo criminal contra ele continua correndo no Tribunal de Justiça. Caso o Conselho decida expulsá-lo, o julgamento que corre em São Paulo perderá a validade – Thales será então submetido ao júri popular de Bertioga. Se isso acontecer, a decisão final caberá ao Superior Tribunal de Justiça, os guardiões da Constituição Nacional.

A qualquer momento, o Tribunal de São Paulo pode convocar o julgamento. O processo já está sendo lido pelos revisores. Os conselheiros de Brasília estão perto de chegar a um consenso sobre a carreira do promotor.

Enquanto isso, Thales faz pós-graduação. Tem sonhos. Mesmo sem trabalhar há três anos, ganha R$ 18.000 por mês. E diz que, “graças a Deus”, tem recebido solidariedade de muitas pessoas. No dia 21 de maio, festejará 30 anos.

5 perguntas para Thales Schoedl
O promotor afirma ter agido em legítima defesa, diz que atirou contra a vontade e conta como essa decisão afetou sua vida
Você se arrepende do que fez?
Posso lhe dizer que, embora tenha convicção de que agi em legítima defesa e que minha conduta salvou a minha vida, eu lamento muito o que aconteceu.

O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre o caso e que, em sua opinião, ainda não sabem?
Que os disparos não ocorreram porque mexeram com a minha namorada, mas sim porque, após esse fato, aquele grupo de pessoas, incentivado por uma multidão que gritava para me matar, correu atrás de mim, iniciou as agressões e tentou tomar a minha arma, momento em que fui obrigado a atirar, contra a minha vontade, para salvar a minha vida. Tudo isso está no processo, relatado por várias testemunhas.

De que forma a repercussão pública do caso mudou sua vida?
Eu estou terminando um curso de pós-graduação, mas tem sido muito difícil não poder realizar o trabalho que eu amo, na Promotoria de Justiça. Claro que por conta da repercussão do caso eu tenho receio de freqüentar lugares públicos, mas graças a Deus eu só tenho recebido solidariedade das pessoas, pois hoje muita gente conhece a realidade dos fatos, de acordo com o que consta no processo.

Existe algum conflito em ser promotor depois de ter matado em legítima defesa?
Não penso em outra profissão. Ser promotor de justiça sempre foi o meu sonho, e eu lutei muito por isso. Como eu já disse, é a profissão que eu amo.

Não vejo problemas em um promotor de justiça que agiu em legítima defesa continuar atuando, mesmo porque legítima defesa não é crime e pode acontecer com qualquer pessoa.

Você fez cursos para manejar armas de fogo? Teve de usar a arma antes?
Sim, fiz dois cursos, um no Exército e outro no Barro Branco, promovido pela APMP, mas nunca havia utilizado minha arma de fogo em outra situação.

Fotos: Alex Silva/AE, Pisco Del Gaiso/ÉPOCA (2)

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