sábado, 5 de dezembro de 2020


05 DE DEZEMBRO DE 2020
MÔNICA SALGADO

Excesso de intimidade 

Atenção: esta não é uma coluna sobre coisas nojentas e escatológicas! Pode ler tranquilamente antes do almoço de domingo. É uma coluna sobre intimidade. Excesso dela. Portanto, sim... os dois universos se interseccionam. Vá lá, até podem se confundir. Mas não se encerram um no outro, oh, não. Há muito mais poesia na intimidade do que sonha a vã filosofia dessa nossa mente suja.

A coisa começa devagarzinho, assim como quem não quer nada. É um fofo "você pode não entrar no banheiro agora porque acabei de usar?", um conjunto desconjuntado de lingerie, uma calcinha sorrateira pendurada no registro do box, uma depilação ligeiramente vencida que você não ousaria deixar passar lá no início. Logo, o lance evolui pra um cravinho espremido, um pelo na verruga arrancado na pinça, um "olha pra lá que eu vou fazer xixi".

E aí, senhoras e senhores, chegamos ao patamar em que me encontro hoje, 22 anos de convivência intensa com o senhor meu esposo. Aqui, o céu é o limite, e o nível de intimidade destruidora de fantasias românticas/detonadora dos desconhecidos que perfumam a relação varia de casal pra casal. O que difere meu casamento do seu pode ser um número 2 de porta aberta ou um campeonato de pum debaixo do edredom. Ou, quem sabe, a intimidade das intimidades: a psíquica, que lê mentes e adianta palavras ainda não ditas.

Acabamos de voltar, meu marido e eu, de uma viagem de 10 dias ao Egito - que destino, uau! E todo mundo sabe que viagens de casal são uma caixa de Pandora do excesso de intimidade. Uma semana grudado equivale a um ano de vida normal. Porque na vida cotidiana, mesmo em tempos de pandemia, acabamos nos safando da FEI (fadiga por excesso de intimidade) por mantermos horários e atividades diferentes. Sábia Nossa Senhora da Rotina Individual Preservada. Agora... 24h com o que há de mais irritante e comezinho em nossa personalidade é coisa que só vem à tona nas viagens. Início da parte escatológica no parágrafo abaixo.

Apego-me ao tema por motivos autobiográficos: meus humores em viagem costumam ser bastante afetados pela atividade (ou ausência de) intestinal, como os dos antigos egípcios eram afetados pelas secas e cheias do Rio Nilo. E discuto isso em detalhes com meu marido. Será que é por isso que dizem que intimidade é uma merda?

Depois do café da manhã, tenho que ter meu momentinho. Então, na hora de planejar o despertador da manhã seguinte, há que se computar essa meia horinha sagrada. Que na maioria das vezes dá em nada, o que me consagra como a enfezada da viagem - título que ostento até descer um Almeida Prado 46 com vinho branco egípcio (são ótimos, por sinal). Almeidinha (mais para Almeidão, se é que me entendem), por sua vez, faz efeito em pleno Vale dos Reis. A múmia de Tutankamon que me aguarde. Mais uns minutos pra quem está ali faz 2.500 anos não há de ser nada. E os sinos mágicos da intimidade soam quando um marido genuinamente preocupado questiona, no meu retorno do banheiro, pelos meus cálculos cerca de 1kg mais magra: "E aí? Saiu tudo?". Fim da parte escatológica.

Seria nojento se não fosse fofo. Isso vindo do mesmo ser humaninho que, dois dias mais tarde, fez cercadinho com a jaqueta para que eu colocasse para fora, na beira da estrada, um Alien que não tinha me caído bem. Fala sério: como eu posso me irritar com a acústica da sua boca ao mastigar pistaches (o som é stereo, impressionante), com a mania de dizer "tanto faz, escolhe você", com a cutucada semiviolenta que me dá quando ronco à noite, acompanhada de uma bufada-saco-cheio, com a recusa patológica em dar qualquer tipo de gorjeta? Como, me digam?

Intimidade é previsibilidade e muitas vezes irritação e frustração. Mas também é previsibilidade e muitas vezes conforto e acolhimento. É quando dois entram num único ritmo, como numa coreografia que envolve corpo, mente e alma. É coisa que relativiza o nojo, que desarma a gente. Tem saliva, tem sexo, tem restos, tem fluídos corporais diversos, tem amor, tem tédio, tem vontade de viver tudo de novo. E que venha nosso próximo destino. Que eu escolho, claro, afinal, pra você tanto faz. Aff!

MÔNICA SALGADO

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