sábado, 5 de dezembro de 2020


05 DE DEZEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

AO RADAELLI

A floresta devastada dá lugar a cinzas e troncos pretos, queimados, que parecem logogramas chineses, grafados com a pulsão e a intensidade de quem transmite mensagem urgente. Há uma violência na paisagem, que precisa ser revelada. O céu, transmutado, é rosa, pintado sobre fundo azul, como se estivéssemos em outro planeta, em que a cor delicada contrasta e revela a gravidade dos sinais que colhemos, lavoura invertida em que o verde está ausente. Que planeta é este, que mundo criamos com nossos gestos, que escritas podem revelar e transmitir essas mensagens? Eis onde entra em cena a verdade da arte e o poder singular do artista, a mensagem pincelada por Gelson Radaelli (1960-2020), sempre e ainda mais no estágio avançado de sua grande obra.

Ora foi o destino que pintou cena dura de aceitar, com a partida precoce desse grande artista, cidadão exemplar, ser humano ímpar e amigo dileto, aos 60 anos, na madrugada silenciosa do último dia 28. Sua arte, sua trajetória e suas expressões de amor, rigor e humor ainda pairam e sempre pairarão como imagens que animam os horizontes do mundo. Ora a melancolia do luto aquilata ainda mais os sentidos do fenômeno que testemunhamos, a saga de um artista admirável revelando o que a arte pode e deve simbolizar: os enigmas da condição humana, da linguagem e dos universos em que vivemos e sonhamos. 

Na revelação pela arte, vigora a força ambivalente de uma potência complexa, em que as questões são formuladas por meio da melhor resposta cabível, a linguagem que percebe, reflete e reage com gestos e mensagens. A arte perpetua as questões, as amplia conjugando sinais abertos e sensibilidades, em muitos tempos e espaços, e oferece a cada sujeito, como um prato criado com talento e servido com amor, a possibilidade de se nutrir e se constituir pensando e saboreando símbolos.

Desde a aurora do Estado, a arte e as religiões servem ao poder e produzem propaganda bela, persuasiva, perene, que nos permite hoje saber muito do Egito, da Grécia ou de Firenze, desde que saibamos decifrar. É nas fendas e lacunas desse poder impositivo que artistas puderam, em saga de milênios, construir linguagens e modos de vida capazes de contrapor à autoridade que controla a liberdade que especula e cria. 

Há, por certo, artistas que seguem cativos do Estado e de poderes igualmente violentos, como o mercado e a mentira, e há, desde a mais alta antiguidade, os que compreenderam sua natureza e possibilidades no mundo e respondem com enigmas que revelam. É dessa cepa de artistas que vêm as perguntas que nos constituem e propelem: quem sou eu, quem somos nós, que mundo é este, o que fiz e fizemos, como viveremos ou sairemos dessa? Se a imagem apenas ornamenta, não é arte, mas sintoma da sua ausência. E quando ela torna sensíveis os arcanos simbólicos da cultura, eis o âmago vital da parte bela destes seres terríveis que somos nós, os humanos.

Sorva e beba esta bela arte como a um vinho extraordinário, seiva de Dioniso, em memória de Gelson Radaelli.

FRANCISCO MARSHALL

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