quarta-feira, 2 de setembro de 2015



02 de setembro de 2015 | N° 18282 
PEDRO GONZAGA

ÓCULOS


Era a metade da década dos meus vinte. Costumava ir muito ao cinema, julgando-me um espectador invulgar com minhas leituras e noções de fotografia. (Houvera uma máquina do tempo e a mais necessária das viagens seria aquela para dar-nos uma bordoada corretiva.) Presunçoso, eu gritava: foco!, pedindo um ajuste fino na projeção, sem o qual as cenas pareciam subaquáticas. 

Chegou um dia, no entanto, em que, por mais que eu pedisse, nada era feito. Meu plano de vida à época era virar um carro com as próprias mãos, como no programa O Homem Mais Forte do Mundo (aquilo que era entretenimento), e foi só aos poucos que notei, pelo constrangimento assustado das pessoas ao redor, que o problema de foco estava em mim.

Eu precisava de óculos.

Levei meses, sentando fileira após fileira mais perto da tela, antes de procurar ajuda. Há dois tipos de hipocondríacos: os que vivem em consultórios, certos de que a doença fatal será revelada no próximo exame; e os que vivem em farmácias, automedicando-se, enquanto concebem terríveis enfermidades não aferidas pelos médicos.

Pertenço ao segundo tipo. Mas um dia, cansado das dores nos olhos que a aspirina não mitigava, cedi. A consulta durou pouco: astigmatismo e hipermetropia. Confesso que gostei da receita, com aqueles números cheios de vírgulas, ainda que esperasse mais suspeitas do dr. Alan Courtes. Como um simples óculos poderia ser a solução? O que aconteceu dias depois, ao efeito das lentes da Ótica Cláudio, foi uma revelação: o centro era brilhante em seus inéditos contornos.

Anos depois, quando li a história do Miguilim, de Guimarães Rosa, um menino que via a família e o mundo sob o véu da miopia até receber uns óculos, entendi o que me passara, com aquele poder que a grande literatura tem de ressignificar o que vivemos.

De fato, o que eu queria dizer é que às vezes Porto Alegre ganha de súbito essa mesma nitidez das primeiras lentes, ao sol branco de uma manhã de inverno, deserta de memória, liberta de tantas vezes ter sido cruzada, e novo também parece o rio, os morros, o triste muro, efeito, quero crer, que mesmo os de visão sadia sabem experimentar.

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