terça-feira, 6 de janeiro de 2015


06 de janeiro de 2015 | N° 18034
MÁRIO CORSO

O silêncio dos automóveis

Como seria se nossos carros pudessem falar? Dizer como foram companheiros e possibilitaram muitas das nossas aventuras. Mas não é assim, eles não falam. Porém, não falam porque não podem ou porque não queremos ouvir suas histórias tristes? Eu sou mais pela segunda opinião. Os carros sofrem demais, sua conversa não é animadora.

Tudo começou em 1982, quando uma Caravan bordô saiu de São Bernardo e veio para Porto Alegre. Não ficou dois dias na concessionária. Saiu de lá carregada, a família inteira veio buscá-la. Estava orgulhosa com o seu casal jovem e dois meninos. Moravam na Praça Japão, e ela tomava banho toda semana. Um arranhão leve na lataria era sanado imediatamente. Sentia que tinha encontrado seu lugar no mundo.

Mas essa vida de viagens à praia e buscar as crianças na escola durou pouco. Sem aviso, um dia qualquer, foi levada de volta à concessionária. Nunca soube por que nem pelo que foi trocada.

Sua vida mudou. Seus novos e sucessivos donos reclamavam que ela bebia muita gasolina e ia sendo passada para frente. Mal se acostumava a uma nova garagem e já estava noutra. Nem dava tempo de se apegar. Conheceu bairros mais pobres e a periferia. Seus novos donos mal trocavam o óleo. Esqueceu o que é um tanque cheio. Autorizada nunca mais, vivia de peças usadas e improvisadas. As viagens a passeio acabaram. De madrugada, fazia compras na Ceasa; de dia, entregava ranchos.

A maior tortura era quando uma diligência pedia para ir ao aeroporto. Ficava sempre perplexa, eram muitas camionetes novas, marcas e modelos que nem suspeitava que existissem. Se sentia envergonhada por estar sem calotas. Às vezes imaginava que elas quisessem saber do seu passado, da sua experiência, mas estavam todas entretidas entre si e ela nunca conseguia entrar na conversa. Notava nelas uma ponta de vergonha por serem vistas falando com uma velha.

Seu atual dono, um serralheiro, soldou na capota uma espécie de gaiola de ferro para transportar os portões que conserta e entrega. Era como uma coroa, mas significava o avesso. Para seu desespero, uma dessas encomendas foi na rua em que passou seus melhores dias. Podia ver dali a casa onde um dia se sentiu tão amada.

Rezava para que o serviço terminasse. Não queria ver nem ser vista. Como sempre, quando tememos um encontro ele acontece. Sua antiga família passou numa camionete novíssima. Menos mal que não a reconheceram. Queria morrer, mas não ali. Mal conseguiu arrastar os pneus até sua casa antes de fundir o motor.


Quando for reclamar da brevidade da nossa existência, pense nos nossos amigos automóveis, esses sim tem uma vida curta e conhecem a decadência muito rápido.

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