04
de janeiro de 2015 | N° 18032
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Preto ou branco
Novo
ano, novos governos, mas sob a sombra de um velho vício no debate público
brasileiro – continuar a pensar no mundo como tendo uma divisão nítida, preto e
branco, nós e eles. Ano passado, com a eleição, todo mundo viu como e quanto
ficamos reféns de uma visão simples, muitas vezes simplória, de oposição pura e
simples entre duas posições.
O
formato do segundo turno exacerba essa percepção, e tudo ficou ainda mais
quente porque estavam em confronto candidatos dos dois partidos que, no fim das
contas, são os únicos, depois da redemocratização, que têm programa e se
viabilizaram eleitoralmente (outros há com apenas uma das duas características
– sem programa mas viáveis, com programa mas inviáveis).
A
situação me lembrou bastante o tempo da minha adolescência, anos 1970, quando
também havia basicamente duas posições – contra a ditadura e a favor dela. Foi
uma das facilidades da experiência de minha geração, ter inimigo nítido, que
dava asco mas contribuía com sua visibilidade para a nossa organização mental e
afetiva. Quem concordava era nosso inimigo, e logo depois ficou também claro
que quem calava estava consentindo, ao passo que nós outros fomos para a rua,
ajudamos a fundar partidos, quando pouco boicotamos algum ato oficial, deixamos
o cabelo crescer para além dos padrões anteriores, deixamos desbotar as calças.
Tive
a sorte congênita de apreciar a ironia e o humor, que encontravam no Pasquim
expressão superior – Ivan Lessa acima de todos. Depois vieram Machado de Assis
e Nelson Rodrigues. Isso me livrou da ortodoxia para sempre. Bem sei que há
momentos-limite em que só há duas posições, e então ou se é isso ou se é
aquilo, sem meios-termos. Mas quase sempre há, deve haver, mais de duas
possibilidades, sobretudo no reino do pensamento, da reflexão, do comentário,
seja ele no bar, no churrasco com os amigos ou na profissão.
Para
a criação artística, a existência de apenas dois polos é mortal. A boa arte,
pode-se ver ao longo dos tempos, é sempre aquela que escapa das trampas
ideológicas, muitas vezes apesar ou além da consciência dos criadores, que até
podem ser partidários disso ou daquilo. Arte a serviço do que quer que seja é
uma chatice abominável.
Em
nossos dias, continuam acesas as diferenças, por motivos antigos, mas também
por novos, como a existência da internet e das ditas redes sociais. Isso mudou
o modo pelo qual as pessoas, eu ia dizer comuns, vá então “comuns” em aspas, se
relacionam com a opinião até há pouco exclusiva – políticos, figuras da
imprensa, o padre, o professor, o jogador de futebol.
Desdobramento
lateral: agora que todo mundo toma a palavra, o prezado leitor viu que não há
mais ironias contra a precariedade de expressão dos boleiros? Antes era uma
pegação de pé impressionante, preconceituosa até. Os jogadores de futebol hoje
vêm de trajetórias sociais menos marginais, ou então dão um jeito de decorar a
fala característica do mundo da bola, aquela algaravia interminável, quase
sempre mera espuma, sem consequência ou permanência.
O
Rio Grande do Sul está acostumado, há mais de três séculos, a pensar e agir de
modo polarizado, também no futebol. E não parece que essa experiência toda nos
livre deste mal tão logo.
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