06
de dezembro de 2014 | N° 18005
CLAUDIA
LAITANO
Água morna
Cada
um de nós tem um ponto de ebulição. Ao contrário da água, porém, que sempre
ferve na mesma temperatura, pessoas, grupos sociais e mesmo países inteiros
evoluem do estado passivo para o indignado em diferentes circunstâncias e por
diferentes motivos. O que para uns parece intolerável para outros será apenas
um pequeno incômodo, um desconforto com o qual se deve aprender a conviver e
aceitar.
As
manifestações das últimas semanas contra a violência policial e o racismo nos
Estados Unidos sugerem que o país ferve com água morna se comparado ao Brasil
em situações semelhantes. Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública divulgado no mês passado mostrou que a polícia brasileira matou em
cinco anos cerca de 12 mil pessoas – mais ou menos o número de pessoas mortas
pela polícia americana no período de 30 anos.
Ao
ver o tamanho da reação à absolvição dos dois policiais envolvidos na morte de
homens negros desarmados, em Ferguson na semana passada e agora em Nova York, é
difícil não nos sentirmos como uma mulher que apanha todos os dias em silêncio
quando vê a vizinha abandonar o marido depois de levar o primeiro tapa. Nos
últimos cinco anos, o Brasil poderia ter ido mil vezes à rua para reclamar de
sentenças de morte decididas conforme a classe social ou a cor da pele, mas por
algum motivo nossa fervura nunca chega a levantar – pelo menos por pretos,
pobres, periféricos.
Vistas
à distância, já sob alguma perspectiva histórica e depois de uma Copa e de uma
eleição, as manifestações de junho de 2013 parecem cada vez mais um momento
isolado de catarse. Cada um daqueles slogans envolvendo serviços públicos que
não funcionam, corrupção, violência policial ou crise de representatividade
dizia respeito a algo que nos acostumamos a acreditar que não tem conserto –
por comodismo, ceticismo ou dificuldade de articulação política fora dos
partidos convencionais.
Foi
tão ruidoso esse momento de catarse, que havia o medo de que as comportas da
indignação nacional tivessem sido abertas definitivamente, para nunca mais
fechar – motivos não faltariam. Os meses seguintes e a ausência de qualquer
oscilação política notável nas últimas eleições, porém, nos levam a constatar
que os desdobramentos daquele movimento possivelmente foram superdimensionados.
Ainda
assim, houve um personagem que provavelmente não teria ganhado a dimensão que
ganhou não tivesse sua história vindo a público durante o clima de indignação
coletiva das manifestações. Amarildo, o favelado negro e pobre morto dentro de
uma UPP, escapou à sina da indiferença e foi adotado como causa pela classe
média frequentadora de passeatas e de redes sociais. Foi nosso breve e
passageiro “momento Ferguson”, e em seguida voltamos todos a nadar na água
morna e indiferente de sempre, para azar de todos os outros Amarildos que
vieram depois.
Quanta
violência é violência demais? Existe violência tolerável? Até que ponto nosso
silêncio nos torna cúmplices da violência alheia? São perguntas como essas que
Ferguson está nos obrigando a formular.
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