04
de outubro de 2014 | N° 17942
CLÁUDIA
LAITANO
Ara
“A
Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro.”
Essa
talvez seja a mais célebre dedicatória da literatura brasileira, não apenas
porque antecede um dos maiores romances já escritos em nosso idioma, Grande
Sertão: Veredas, mas porque esconde/revela uma arrebatadora história de amor – intensa
e complicada como costumam ser as grandes histórias de amor.
Para
preservá-la, Guimarães Rosa achou por bem registrar, no bronze metafórico de
uma dedicatória, que o livro pertencia – para todos os fins de direito e de
afeto – ao grande amor de sua vida, salvaguardando sua obra-prima de disputas
futuras e das picuinhas de inventários e herdeiros ressentidos. Ter o nome
gravado em uma obra-prima já seria o suficiente para carregar a memória de
qualquer mortal para a posteridade, mas Aracy entraria para a história por um
motivo ainda mais grandioso.
A
vida de Aracy Moebius de Carvalho (1908 – 2011) ganha merecido destaque agora
com o documentário Esse Viver Ninguém me Tira, dirigido pelo ator Caco Ciocler
e exibido em agosto no Festival de Gramado. Em 2008, às vésperas de completar 100
anos, a viúva do escritor Guimarães Rosa já havia sido retratada em uma grande
reportagem da jornalista Eliane Brum para a revista Época – intitulada, não por
acaso, A Lista de Aracy, em referência ao filme A Lista de Schindler, de Steven
Spielberg, que conta uma história parecida.
Trancada
em seu mundo interior pelo Mal de Alzheimer, Aracy já não podia narrar a própria
trajetória, mas muitas pessoas que ela direta ou indiretamente salvou ajudaram
a reconstituir a história do “anjo de Hamburgo” – a modesta funcionária de um
consulado do Brasil na Alemanha que arriscou a vida e o emprego para fazer o
que era certo. A emocionante reportagem de Eliane é ilustrada por retratos de
famílias brasileiras que só vieram a se constituir porque Aracy, contrariando o
bom senso e as ordens do governo brasileiro, facilitava a concessão de vistos
para judeus que tentavam escapar da Alemanha nazista.
Vista
de longe, no tempo e na sua dimensão histórica, a coragem de Aracy pode nos
parecer excepcional, mas não são necessários nem nazistas nem guerras terríveis
nem grandes momentos históricos para que sejamos confrontados com escolhas
morais que nos definem – se não para a posteridade, pelo menos em relação ao círculo
de pessoas que somos capazes de influenciar. Esses momentos que convocam nossa
capacidade de julgamento nos aparecem quase todos os dias, e mais cedo ou mais
tarde somos confrontados com as suas consequências.
Em
Grande Sertão, Riobaldo revê suas escolhas e as “veredas” a que elas o
conduziram e conclui: “Para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da
gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa
consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano
fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo o falso, e é o
errado”.
Aracy
teve a chance de fazer o que era certo – e fez. Seria bom pensar nisso amanhã,
seria bom pensar nisso todos os dias.
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