26
de outubro de 2014 | N° 17964
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
O PAÍS MAIS FEMININO DO
MUNDO
Dois
conhecidos casos, de desconhecidas mulheres do Velho Oeste.
Ambas
viviam do lado de lá do Mississippi, “o Pai das Águas”, nas sombras do século
19. Suas casas toscas haviam sido levantadas do chão em meio a vastas extensões
de terra desabitada por onde pastava o bisão e cavalgavam índios hostis. Uma
delas, depois de ficar mais de ano sem ver outra mulher, soube que uma família
acabara de se estabelecer a poucos quilômetros de distância. Animada com a
notícia, vestiu a roupa domingueira, tomou os dois filhos pela mão e foi saudar
os novos vizinhos.
Depois
de horas de caminhada, encontrou, enfim, a outra mulher. Ao avistá-la, não se
conteve: jogou-se, aos prantos, em seus braços. Não muito mais tarde, voltou
para o isolamento do seu sítio, levando o espírito renovado tão-somente por ter
conversado por alguns minutos com outro ser humano do sexo feminino.
A
segunda mulher morava em sua casa de paredes de barro, das quais brotavam
percevejos aos milhares, entre as quais voejavam enxames negros de moscas. Elas
e os filhos viviam dias sempre iguais, monótonos e duros, trabalhando de sol a
sol, praticamente sem distração ou descanso. Essa mulher, certa manhã, viu seu
filho pequeno sofrer um acesso de choro. A criança atirou-se ao solo duro,
esperneando e gritando:
–
Mamãe, mamãe, nós temos que viver sempre aqui? Em silêncio, ela balançou a
cabeça, respondendo que, sim, teriam de viver ali. Ao que o menino, ainda mais
desesperado, gemeu:
– E
teremos que morrer aqui também?
Essas
estoicas mulheres do Velho Oeste americano eram respeitadas como poucas naquela
época, incluindo aí as da Europa. Caubóis, mineiros e colonos, homens em geral
sem maiores luzes, as chamavam de lady e as tratavam com algo próximo da
veneração. Há quem diga que tal se deve à escassez de mulheres na região, tanto
que muitas chegavam do leste aos grupos, como carga, para se casarem com
pretendentes ansiosos, que as esperavam torcendo os chapéus nas mãos. Mas não
era só isso. Os homens reconheciam o trabalho, o companheirismo e o valor das
mulheres, e prestavam atenção às suas opiniões. Em alguns estados do Oeste, as
mulheres tiveram direito de escolher seus representantes uma década antes de a
Nova Zelândia se consagrar como o primeiro país do mundo a permitir o voto
feminino, em 1893. E cinco anos antes disso, em 1887, uma cidade do Kansas,
Argonia, elegeu uma mulher como prefeita.
No
leste desenvolvido e puritano não era muito diferente. Se você passear por uma
linda alameda central de Boston, na Back Bay, verá monumentos em homenagem a
duas mulheres pioneiras: Abigail Adams e Phillis Wheatley.
Abigail
Adams, espécie de feminista precursora, foi mulher de John e mãe de Quincy
Adams, dois dos primeiros presidentes dos Estados Unidos. Pai e filho ouviam
seus conselhos, e os seguiam. Quando o marido tomou posse, ela advertiu:
“Lembre-se das senhoras, e seja mais generoso com elas do que os que o
antecederam”. Ele obedeceu.
Abigail
usava a ala leste da Casa Branca como varal. Dizem que seu fantasma ainda ronda
por lá à noite, flutuando com os braços estendidos, como se carregasse um cesto
de roupas.
Phillis
Wheatley, inspiradora da outra estátua que você encontrará nas alamedas de Back
Bay, foi trazida como escrava do Senegal e vendida a um comerciante de Boston,
Mr Wheatley, no século 18. Como a escravidão não era popular na Nova
Inglaterra, ela logo foi incorporada à família, ganhou liberdade e pôs-se a
estudar inglês. Phillis transformou-se em poeta e encantou os EUA e a Europa
com seus versos. Não encontrei nenhum vertido para o português. Então, ousei
perpetrar eu mesmo a tradução de um, para mostrar a vocês. Ei-lo:
Foi
a misericórdia me trouxe da minha terra pagã E ensinou minha alma ignorante a
compreender Que há um Deus, que há um Salvador também.
Eu,
que não procurava redenção, que nem sabia que redenção existia.
Alguns
veem a nossa raça negra com olhos de desdém, “Sua cor é uma morte diabólica”,
dizem.
Lembrem-se,
os cristãos, negros, negros como Caim, Pode-se ser purificado, e juntar-se ao
trem angelical.
O
reconhecimento a essas mulheres construtoras dos EUA fizeram deste o país mais
feminino do mundo. Um dia, uma brasileira que vive aqui há muitos anos me
disse:
–
Neste país, em primeiro lugar estão as crianças, em segundo as mulheres e em
terceiro os velhos.
Foi
um inteligente resumo dos valores americanos. Os mais fracos são protegidos
pela lei, e crianças, mulheres e velhos são mais fracos fisicamente. Sinto a
diferença de tratamento quando estou com meu filho na rua. Um pai com o filho
pela mão tem prioridade, porque crianças têm prioridade.
Os
velhos se deslocam pelas ruas de Boston em cadeirinhas motorizadas, vão a toda
parte sozinhos. E, para que eles possam ir de lá para cá, o município cuida
para que as calçadas sejam adequadas, feitas de placas de concreto, sempre com
rampas nas esquinas.
Já
as mulheres, no verão você vê mulheres usando roupas minúsculas que causariam
furor nas ruas das cidades brasileiras, vê mulheres tomando sol de biquíni nas
praças, vê mulheres andando sozinhas por ruas desertas e escuras. Ninguém as
incomoda. Ninguém sequer demora o olhar sobre elas.
Crianças,
mulheres e velhos. Ao colocá-los em primeiro lugar, um país se transforma em
uma Nação.
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