05
de outubro de 2014 | N° 17943
MARTHA
MEDEIROS
Comida no prato
Daniel
Filho é um diretor incansável, sempre disposto a novos desafios, mesmo já tendo
conquistado seu lugar de honra entre os maiores nomes do cinema e da tevê brasileira.
Quando ele tinha 72 anos e filmava o longa-metragem sobre Chico Xavier, alguém
perguntou por que ele não parava de trabalhar. Ele respondeu: Minha mãe me
ensinou a nunca deixar comida no prato. E tem comida no prato.
Filosofia
do dia a dia. Está explicada a dificuldade que muitos sentem ao se aposentar. Ainda
tem comida no prato. É uma sensação comum também a todos os que são sutilmente
convidados a saírem de cena, tendo suas solicitações de emprego negadas ou
deixando de serem chamados para participar de reuniões familiares e sociais. Como
assim, se ainda tem comida no prato?
Mais
do que comida no prato, ainda existe fome.
O
ser humano aceita a ideia da morte (real ou figurada) apenas quando não se
reconhece mais como um faminto, quando o corpo cansa, a mente falha e a alma
pede pra sair. Quando não há mais vontades, desejos, planos. Quando não vê mais
necessidade de alimentar-se do que a vida oferece – música, cinema, amigos,
natureza, sexo. Quando não há mais um sonho para renovar a energia, um projeto
passível de realização, nenhuma esperança de que amanhã tudo possa mudar. Quando
a sensação for de completo enfado. Quando não houver mais comida no prato.
Será
que esse dia chega, mesmo?
Às
vezes me consola pensar que sim, que chegará o dia em que estarei esgotada de
tantas emoções vividas, de tanta agitação em volta, e a ideia de descansar em
paz não será tão aterrorizante. Trabalho feito, missão cumprida, uma vida
aproveitada até a rapa – o que mais se pode querer? A comida some do prato e
levantamos da mesa sem a sensação de estarmos nos antecipando. É um plano de
retirada maduro e consciente.
Porém,
converso com pessoas que estão na chamada terceira idade e elas me dizem: não
mesmo. Não é assim. “Quero mais”, dizem todas elas, mesmo com artrite,
catarata, andando de bengala. “Quero mais.” Alcançam o seu prato para o chefe
da cozinha e exigem uma porção adicional, e mais uma, e outra, e de novo. Quem
ousará acusá-las de fominhas?
Para
quem encara o fato de ter nascido como um privilégio, para quem não permite que
suas potencialidades, mesmo reduzidas, sejam vencidas pelo desânimo, para quem
domina a arte de temperar o convívio com as pessoas que ama nunca chegará o dia
de declarar-se satisfeito. Aos 79, aos 84, aos 91, aos 98: enquanto a vida
parecer suculenta, ninguém há de cruzar os talheres.
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